Novo diretor do Museu do Porto, Jorge Sobrado aposta numa relação mais próxima com a cidade, combatendo "o anonimato e o caráter abstrato do projeto". Criação da Casa da Poesia no espaço onde morou Eugénio de Andrade, no Passeio Alegre, é uma das novidades.
Corpo do artigo
Na primeira entrevista enquanto Museu do Porto - nova designação do Museu da Cidade -, Jorge Sobrado afirma querer ajudar a construir um projeto "menos abstrato" e mais próximo da comunidade para a qual se dirige. Para esse objetivo, defende, será fundamental a abertura de um núcleo central do museu, a funcionar no edifício da Alfândega já no próximo ano.
Frontal, não hesita em considerar excessivo o número de espaços que integram o projeto, cerca de 16, até porque nem todos têm caráter museológico.
https://d23t0mtz3kds72.cloudfront.net/2023/01/corr25jan2023_entrevista_jorge_sobrado_diretor_museu_da_cidade_20230130085645/mp4/corr25jan2023_entrevista_jorge_sobrado_diretor_museu_da_cidade_20230130085645.mp4
Está a completar dois meses no cargo. Quais os dossiês mais urgentes que tomou em mãos?
Antes de mais, havia que recentrar e reformar o projeto. Esse recentramento passa por fazer do Museu da Cidade o Museu do Porto. A declaração pode parecer óbvia, mas isso não tem sido sempre evidente. É um museu com raízes que refletem o Porto, mas é também um espelho da cidade a partir das suas coleções e figuras. Queremos uma nova relação com a cidade, que passa por assumir um núcleo axial que dê coerência e consistência a este projeto. Um espaço a que possamos chamar Museu do Porto.
O local já está definido?
É a Alfândega, um espaço que está pronto e não exige esforço de requalificação moroso. Vai ser o núcleo central do museu. Tem uma centralidade no coração antigo da cidade e é ele próprio um emblema da identidade do Porto. Identidade portuária, burguesa e até política. Vamos, finalmente, ter uma casa a que podemos chamar Museu do Porto e irá valorizar os acervos municipais das coleções que temos em depósito, mas não deixará de ter uma relação com a criação artística e a tecnologia.
Se a transformação do Museu da Cidade em Museu do Porto é óbvia, como diz, porque nunca foi posta em prática?
Não tenho tempo para polémicas. O nosso desafio é conseguirmos vencer um certo anonimato e um caráter abstrato do museu. Daí que vamos assumir a mudança do nome. É o Porto que nos diferencia de outros museus do território. Um bom resultado seria que, dentro de algum tempo, já não houvesse o sentimento de que metade da população não conhece o seu museu e a outra metade não o compreende. Esta rede polinucleada precisa de um centro, que seja ao mesmo tempo ponto de partida da experiência dessa rede. Precisamos vencer esse anonimato, tornando o museu reconhecido, fazendo com que a comunidade do Porto e a que nos visita se sinta parte deste projeto.
Sente que já conhece os cantos à casa?
A imagem talvez seja de um comboio que não parou numa oficina mas não mudou o seu percurso. Vamos reformar este comboio mas ele não abranda nem trava a sua marcha. O momento de chegada é um momento de conhecimento de dossiês, das casas e este é um museu de rede, com diversas casas e coleções. Este museu é uma herança de quase 200 anos, que resulta de doações e, portanto, tratou-se de um período de diagnóstico, de auscultações, confrontando esse conhecimento com algumas ideias que trazia da observação que ia fazendo, mesmo que à distância, deste projeto.
Entre a ideia que tinha deste projeto e a realidade que encontrou, há algo que o surpreendeu?
A ideia mais esperançosa a de que encontrei uma equipa muito conhecedora e talentosa. Essa equipa é uma garantia de futuro, de que podemos acalentar uma nova página sobre este projeto que não nasce agora, tem a sua história. Desde os anos 70, encontrei artigos sobre o projeto do Museu do Porto, mas, na realidade, as origens são ainda mais antigas. Esse diagnóstico está praticamente feito, embora todos os dias descubra coisas novas sobre a casa, as coleções ou os artistas que se relacionam com a cidade. É um processo que nunca pára, mas já me permite uma radiografia muito estável sobre um novo tempo, com um novo rumo e uma nova relação com a cidade, mas sobretudo a concretização de uma ideia programática de um Museu do Porto, com uma raiz e uma relação que reflete a cidade.
Como reagiu ao convite que lhe foi endereçado por Rui Moreira?
Há uma alegria naturalmente quando recebemos um convite desta natureza. É a minha cidade. Foi no Porto que nasci, é no Porto que estão as minhas raízes familiares. É um convite especial por vir de Rui Moreira, alguém com uma sensibilidade especial e uma visão de cidade muito marcante. É também um desafio de podermos dar um contributo à nossa cidade. Não foi difícil convencer-me.
O anterior diretor saiu por não ter "visões convergentes" com a autarquia. Qual o grau de autonomia que o detentor deste cargo deve ter?
Um museu de território não pode ser um projeto de autor ou, se esse autor existe, tem que ser coletivo. A missão de um museu deve transcender a figura do diretor. É evidente que a sua visão, experiência ou sensibilidade marcam sempre um projeto. Mas, apesar de haver sempre esse cunho pessoal, há aspetos ligados à missão ou conceito, entre outros, que devem ser partilhados. Por quem tem a governação da cidade, mas também por um conjunto de sentidos e experiências que emanam da própria cidade, como uma caixa de ressonância. Sentir-me-ei muito bem em prescindir de uma marca autoral em detrimento de uma marca coletiva.
Esse apagamento de que fala é curioso vindo de alguém cujo percurso de gestão cultural tem suscitado muitas atenções.
Não lhe chamaria de apagamento mas de recalibrar de figura. Todo o projeto cultural exige um rosto e assumirei em pleno a minha responsabilidade. Simplesmente, devo assumir-me mais no papel de gestor de projeto e menos como um autor isolado.
O modelo de atuação que seguiu na vereação da Cultura em Viseu é replicável no Porto?
A minha experiência em Viseu foi transformadora, mas sei distinguir os planos. Exerci funções políticas em Viseu e no Porto não. A minha função é de gestão de projeto de uma equipa dentro de determinadas balizas que são consensualizadas. Por isso, não se aplicam receitas de outros locais. Isto não é um pronto a vestir.
O recentramento do museu na comunidade local não pode ser entendido também como um espaço menos aberto a influências exteriores e, nesse sentido, menos cosmopolita ou até ambicioso?
Um museu não é uma casa fechada ao seu tempo. É um espaço de diálogo e de construção entre a memória, os artistas e os investigadores do tempo de hoje. O Museu do Porto é uma plataforma e um espaço de encontro da cidade consigo própria, onde possa respirar a sua identidade cultural, mas também um confronto com a ideia de futuro. Devemos ter uma medida de equilíbrio entre a salvaguarda do património da nossa História - de uma identidade plural e miscigenada - mas deve ser um espaço oxigenado pela contemporaneidade, em que possa haver uma ideia de futuro sobre o lugar da cidade hoje. Esse Museu do Porto terá eixos voltados para a Geografia, o Património, mas onde também haja uma caixa onde se pense o futuro e se possa inscrever um pensamento desejante.
A reconfiguração do Museu do Romântico, transformado numa extensão do romantismo, causou polémica há pouco mais de um ano. Essa mudança no conceito veio mesmo para ficar?
O que temos agora no Museu do Romântico já não é a exposição que suscitou a polémica, mas uma exposição que procede a uma valorização muito interessante das nossas coleções de peças que nunca tinham sido mostradas em muitos casos. Faz uma releitura não sobre o período romântico, mas sobre a sensibilidade romântica e cumpre a . A minha prioridade não está Em alterar essa exposição mas em qualificar a experiência.
Os portuenses serão os principais destinatários das iniciativas a desenvolver, passando para segundo plano os turistas?
Um museu do território deve ser um museu que dialoga e se dirige antes de mais para a sua comunidade. Esse é o público primordial do nosso projeto. Um projeto de discurso cultural sobre a História, a memória, a morfologia. Não se trata de começar de novo. Não vamos deitar fora o bebé com a água do banho, mas há uma nova relação a construir do ponto de vista da comunicação. Mudar o nome não é um aspeto puramente publicitário. É afirmar uma raiz, ativar uma relação e um elo emocional com o público, Devemos ser generosos com o público e exigentes connosco. Queremos ser também uma porta de entrada para a cidade, ou seja, que quem nos visite encontre um fio condutor.
Faltam menos de três anos para o fim do mandato do atual executivo. Parece-lhe um tempo razoável para implementar o projeto?
Há tempo para recentrar o projeto e devolvê-lo aos cidadãos do Porto, Independentemente do que aconteça no futuro autárquico, se o fizermos bem no nosso tempo, será a própria cidade que não vai querer abrir mão do Museu do Porto. Não se fará tudo neste ciclo mas há tempo suficiente para virar o projeto.
Cinco dos 16 espaços do Museu do Porto estão por abrir. Qual o ponto da situação em relação ao final das obras?
Com exceção da Quinta da Bonjoia, todas as casas, como o museu que vai nascer no Matadouro, o Museu da Indústria no CACE no Vale de Campanhã e a Casa António Carneiro, vão estar a funcionar antes de 2025, logo neste ciclo autárquico.
Dezasseis locais que integram o museu parece-lhe um número adequado?
Não estou muito agarrado ao número. Há casas que têm mais funções de apoio ou de serviço educativo do que museológico. Será mais eficaz na nossa comunicação e na relação com as pessoas que possamos ter um naipe mais reduzido de casas com funções especificamente museológicas. Há uma nova casa que não estava prevista, a estrela-guia, que expande o projeto.
Além de diretor do museu, é também responsável pelas bibliotecas. Que ideias vai procurar implementar nesta área?
O meu desafio é tríplice: ajudar as bibliotecas a inscreverem-se no século XXI, fazer um esforço acrescido de digitalização e, por outro, no momento em que fechamos a Biblioteca Pública Municipal do Porto, por motivo de obras, fazê-la abrir de outro modo. Estamos a trabalhar em momentos expositivos de património que em muitos casos nunca foram vistos. Estamos a trabalhar com especialistas em torno de manuscritos medievais, como as da Livraria Santa Cruz. ou os livros proibidos da Revolução, com a Ephemera. O fecho da biblioteca é acompanhado pelo desafio de pulverizar parte do catálogo das nossas bibliotecas em pequenas bibliotecas na cidade. Entre este e o próximo ano vamos concretizar o projeto da Bilioteca Errante, como foi designado pelo presidente Rui Moreira, onde teremos bibliotecas especializadas em alguns dos espaços que integram a rede
Não faltam no Porto locais que testemunhem a ligação de grandes autores à cidade?
Vamos criar uma Casa da Poesia no edifício onde morou Eugénio de Andrade, no Passeio Alegre. Vamos reabri-la e devolvê-la à cidade, assim que estiverem concluídas as obras necessárias. Não encontramos melhor destino para esse espaço.