
Jorge Sousa Braga, poeta e médico
André Rolo / Global Imagens
Galardoado com o Prémio Literário da Fundação Inês de Castro pelo livro "Matéria escura e outros poemas", Jorge Sousa Braga rejeita o epíteto de autor consagrado. "Essa palavra faz-me comichão", diz, em entrevista ao "Jornal de Notícias".
Publicado há dois anos, "Matéria escura e outros poemas" continua a somar prémios. Depois do galardão atribuído pela SPA no ano passado, agora foi a vez de a Fundação Inês de Castro premiar o mais recente livro de Jorge Sousa Braga, destacando "o espanto e o alarme" que o atravessam. Para o poeta e médico natural de Cervães, no distrito de Braga, mas a residir desde a juventude no Porto, o reconhecimento não é suficiente para deixar de colocar em causa os seus próprios limites, de que ter diz ter plena consciência
Este é o segundo prémio que recebe no espaço de um ano. Acha que está a entrar na fase da consagração?
Essa palavra faz-me comichão.
É algo a que jamais se irá habituar?
Temos que agradecer os prémios, mas não podemos ignorar o valor que temos. Falando em termos poéticos, relativizo o valor que tenho.
Há um lado pernicioso dos prémios? Há quem diga que podem ensimesmar o autor.
Podem. Já conheci quem tivesse alterado a sua postura depois de receber prémios. Não faz sentido.
A ironia que utiliza nos seus poemas é o melhor atributo para relativizar os prémios?
Sim, mas não só. Tenho a consciência perfeita dos limites que escrevo. Ainda me considero um pequeno poeta da província.
Isso é algo que costuma repetir para não se deixar deslumbrar?
A esse nível, nunca deixei de sentir os pés na terra. Os prémios têm um lado interessante, relacionado com a divulgação da poesia. O livro saiu em março de 2020, no inicio da pandemia, e, como tal, não houve divulgação. Também não costumo fazer lançamentos. Por isso, teve um percurso anónimo, embora, graças ao boca a boca e atendendo às circunstâncias, até vendeu bastante bem para um livro de poesia
O Cosmos é talvez o eixo central do livro. Como nasceu a vontade de transformá-lo em objeto poético?
Sou um apaixonado pela astrofísica. Li imenso sobre este tema na preparação do livro. É curioso porque os grandes divulgadores são, na sua maioria, autênticos poetas. Para se conseguirem explicar de uma forma mais simples, recorrem à poesia. Lembro-me do físico italiano Carlo Rovelli. É espantosa a maneira como escreve. Tem um livro em que, no início de cada capítulo, colocou versos do Vergílio. A epígrafe do livro é retirada de um livro de divulgação científica em que o autor pergunta o que restará quando tudo desaparecer. A resposta que dá é a poesia.
Não concorda com a ideia feita de que a poesia e a ciência estão nos antípodas?
De maneira nenhuma. Todas as áreas interpenetram-se. Li algumas antologias de poesia sobre ciência e nota-se bem isso. Há poemas fabulosos sobre a astrofísica.
É uma paixão antiga?
É, mas tem-se vindo a aprofundar. O Manuel António Pina delirava com a Teoria das Cordas e era capaz de ver um documentário sobre o tema a altas horas da madrugada. Vou lendo o que vai saindo e por vezes até compro livros que ainda não estão publicados cá. Gosto de ler e surpreender-me com o que leio. É ótimo mantermos essa capacidade intacta.
Nos seus passeios imaginários pela via láctea que sentimentos o assaltam?
O sentimento é sempre de surpresa e fascínio por aquilo que temos sobre nós e nos ultrapassa totalmente.
É reconfortante pensar que os enxames de galáxias também podem produzir mel, como escreve num dos poemas do livro?
Faz-me impressão pensar que o universo são apenas galáxias, planetas e estrelas. Acho que é redutor que seja assim. Espero que haja mais.
A poesia e a Física são importantes para recentrar o Homem no universo?
Completamente. É importante termos noção da nossa insignificância no meio disto tudo. Somos pequenas fagulhas.
Que pontos de contacto encontra entre o poeta e o cientista?
O cientista tem que ser mais metódico e incisivo. Os dados com que trabalha têm que bater certo. Pode desenvolver teorias, mas tem que as provar. Nós, poetas, não temos que provar nada. Podemos baralhar os dados todos e interpretá-los das maneiras mais diversas.
Tal como o título do seu livro, um poema é também uma matéria escura, proveniente de uma zona não localizável do cérebro?
Desconhecemos muito as nossas capacidades. Há imensa matéria cinzenta que não sabemos para que serve. Imagina-se que, no caso da matéria escura, os físicos inferem que, devido a determinados estímulos gravitacionais, é capaz de estar lá qualquer coisa, embora ainda não o possam definir. No caso do cérebro, passa-se o mesmo. Não sabemos para que serve grande parte do cérebro.
Para si, um poema ainda conserva a aura de mistério?
Como trabalho diariamente como médico, apenas tenho publicado livros de longe a longe. No dia a dia não tenho tempo para me sentar e escrever.
Não vai ao seu encontro?
Quando os poemas têm que cair, caem. Às vezes demoram anos...
Não adianta ir atrás do poema?
Não, não. Vou tomando uma nota ou outra, mas prefiro que eles caiam por si. Na maioria dos poemas de que gosto - e não estou a falar dos meus - nota-se nitidamente que caíram sabe-se lá de onde, embora possam ter sido trabalhados depois.
O seu método poético mudou muito com os anos?
Cada poeta tem a sua maneira de escrever e isso não deve mudar muito durante a vida, porque tem que ver com o que nós somos.
Olha para os seus primeiros poemas com o mesmo sentimento de pertença dos atuais?
Sim. Nunca voltei para trás no sentido de tentar melhorar uma coisa ou outra. A primeira vez que publiquei um poema foi no "Jornal de Notícias".
Que idade tinha?
Uns 14 ou 15 anos. Já não sei ao certo os poemas que saíram, mas lembro-me bem de o responsável da página, o Teixeira Neves, falar-me da importância de conhecer grandes poetas como Rimbaud ou Rike. Foi a primeira vez que ouvi falar neles.
Nos últimos tempos, em partilhado com os seus seguidores nas redes sociais vários poemas traduzidos por si de poetas de várias paragens. Tem extraído ultimamente mais prazer da tradução do que da escrita?
Gosto muito de fazer antologias. Não pela antologia, mas pela oportunidade de descoberta de poemas. Durante a pesquisa que faço, encontro poetas que, de outro modo, não descobriria. Tive essa experiência recentemente, quando me pus à procura de poemas relacionados com o universo feminino, nomeadamente partos, mastectomias ou menstruações. Tinha curiosidade em saber como transportavam isso para a poesia. Descobri poetas singulares, sobretudo anglossaxónicas. Na poesia portuguesa não é habitual essa incursão, feita com uma grande crueza.
Os poemas que traduz e partilha pertencem a uma tradição poética muito diferente da nossa, mais despojada e com menos artifícios. A sua visão poética está cada vez mais próxima dessa?
Sim, sim. Tenho uma grande paixão pelos poetas polacos, como Milosz, Herbert e muitos mais. Na Polónia, levanta-se uma pedra e encontra-se um poeta. Nunca vi um poeta com tal quantidade de poetas grandes.
Traduzir, sobretudo para quem é um poeta reconhecido, é um ato de humildade?
De humildade e aprendizagem. A melhor forma de conhecer um poeta é traduzi-lo. Apreendemos a tática e a estratégia toda que desenvolvem para escrever um poema. Notei isso em relação ao Rilke. Apesar de não falar alemão, consegui, a partir das traduções em inglês, apanhar-lhe o jeito.
Traduz apenas a partir do inglês?
E também do francês. São apenas tentativas de aproximar esses poemas de mim. E, como o faço, pode ser que sirva para mais alguém.
Coloca a mesma entrega no poema, quer esteja a escrevê-lo ou a traduzi-lo?
Sim. Só que estes não caem do teto. Dão mesmo trabalho, embora haja por vezes soluções que aparecem quando estamos na rua ou em pleno sono.
Tem trabalhado em novos poemas?
Passo anos sem escrever nada, exceto tomar notas. Por acaso, já tenho uma ideia do que eventualmente irei fazer, mas, para já, não tenho mais nada.
