Grupo de Teatro Jornalistas do Norte produz nova encenação de "A noite", livro de José Saramago sobre a madrugada da Revolução. Mas nesta história de jornalistas-atores, a ação não se fixa só em 1974; fala-nos dos problemas do jornalismo de hoje. Estreia em Matosinhos, na madrugada do 25 de abril.
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Um grupo de teatro inteiramente formado por jornalistas estreia no dia 25 de abril, no Teatro Constantino Nery, em Matosinhos, uma encenação original de "A Noite", de José Saramago, a primeira obra dramática do escritor, lançada em 1979.
A história passa-se na Redação do "Jornal de Lisboa" na noite de 24 para 25 de abril de 1974, mas nesta versão dos jornalistas-atores, a realidade contemporânea - e a crise concreta do jornalismo -, intrometem-se na história. E assim, na mais famosa madrugada revolucionária de sempre, são interrompidos pelo boato de que o jornalismo morreu.
Em palco, nesta nova "Noite", estão 14 jornalistas-atores que compõem o Grupo de Teatro Jornalistas do Norte: Catarina Ferreira, Dora Mota, Luísa Marinho, Aline Flor, André Borges Vieira, Camilo Soldado, Francisco D. Ferreira, João Gaspar, João Nápoles, Joana Ascensão, Jorge Eusébio, Maria João Monteiro, Pedro Emanuel Santos e Simão Freitas.
A encenação é de Jorge Louraço Figueira e de Leonor Wellenkamp Carretas.
Sara Mago olha-nos nos olhos
A edição do "Jornal de Lisboa" do dia 25 de Abril está fechada, a primeira página é obra do diretor, o ambiente é de alguma crispação, há ali jornalistas que ousam pensar. A revolução entra pela redação trazida pelos "ilustres tipógrafos", vozes que o senhor diretor, fascista, como convinha, tenta calar com a desculpa de que "é preciso salvar o jornal".
No palco, está lá tudo: as máquinas de escrever, o velho transístor, o tabaco espalhado, muitas folhas, o telex, a menina da agenda, que anda enrolada com o sabujo do chefe de redação, a jornalista idealista, o Torres - o revolucionário, as saias abaixo do joelho, os cabelos presos, os pulôveres aos quadrados, o colete reluzente do senhor diretor e, claro, o senhor engenheiro, o homem do dinheiro da administração.
Pelo palco circula Sara Mago, personagem interpretada por Catarina Ferreira, jornalista do JN. É Sara Mago quem apresenta a peça, que fala diretamente para nós, os espectadores - e neste grave caso, os espectadores não se querem passivos .
Ela é "uma cronista de um outro movimento" que há em palco: o movimento tectónico que apanha - e faz tremer - o jornalismo de hoje, que está a ver o seu modelo de negócio, instalado há séculos, falir e ameaçar finar de vez.
Jornalistas zombies? O que se passa?
A ação corre mas a cena é invadida pelo Torres, esbaforido, que manda parar a peça. Já não é o Torres que fala, é Camilo, jornalista do Público.
No palco, já não é 1974. O ano de 2024 regressou e corre na rua um boato cru e cruel: "O jornalismo morreu!", anuncia Camilo, descrevendo que há colegas a desaparecer, a cair para o lado, outros já estão a soro e ninguém sabe nada de nada que se possa confirmar.
O silêncio dura pouco e os atores voltam a si. São novamente jornalistas e falam de algo que não sabem o que é: "O Marques Mendes não anunciou nada, não houve comunicados, nem chegaram mensagens de WhatsApp", ouve-se em golfadas arfadas de ar. É preciso saber o que se passa.
"O que diz a Lusa? E o Expresso? A fonte de Belém ainda não disse nada? E a Entidade Reguladora da Comunicação, será que é desta que diz alguma coisa? O CM diz que já há jornalistas zombies".
"A coisa dá para o torto"
Mas está tudo doido? Já não é o sabujo que questiona mas Simão, o jornalista da Lusa que se recusa a aceitar a morte do jornalismo e que quer continuar a peça: "Há um grupo, que é fictício, de jornalistas, que se junta para montar 'A Noite', mas entretanto, no sentido alegórico, corre que o jornalismo está para morrer e, durante a peça, 'a coisa dá para o torto' e aparece o boato de que o jornalismo morreu", explicou à Lusa Simão Freitas, que juntamente com João Gaspar criou a dramaturgia desta nova "Noite" contemporânea.
"É também um exercício de autocrítica, sobre que jornalismo nos estão a obrigar a fazer. Há um grito de alerta para a perda de controlo editorial, para as administrações, para os baixos salários, a precariedade. Estamos num período em que o tempo é tão frenético e as condições laborais tão deterioradas que começamos a trabalhar vergados. Nós não queremos trabalhar mais vergados", salientou o jornalista.
A própria "criação do grupo de teatro" faz parte da dramaturgia: "O grupo é fictício, há jornalistas, ou melhor, atores que fazem mais do que um papel, mas não é por falta de gente, é porque nós estamos cada vez mais proletários enquanto classe, temos de fazer tudo, tornam-nos autómatos. A ideia do jornalismo como uma profissão intelectual, liberal, perdeu-se, porque temos é de produzir, produzir e produzir".
O jornalismo não está morto
Esta "Noite", no entanto, é também um grito de liberdade, de esperança e "tem muito do 25 de Abril" até porque, salientou Simão Freitas, "só se consegue fazer uma peça com este radicalismo, porque aquela noite trouxe a liberdade".
"E também só a conseguimos fazer da forma que fizemos, com o nível de crítica, análise, de radicalismo nos termos que fizemos, porque acreditamos que o jornalismo não está morto. Não está. Nós não desistimos, ninguém quer baixar os braços e ir para casa dedicar-se a outra coisa qualquer, nem queremos continuar neste jornalismo que criticamos", declarou.
"A Noite", pelo Grupo de Teatro Jornalistas do Norte, estreia-se na madrugada do dia 25 de Abril, à 1 hora, que é quando começa a ação da peça escrita por José Saramago.
Haverá novas récitas no palco do Teatro Constantino Nery, de Matosinhos, nos dias 27 e 28 de abril, estando prevista uma digressão posterior, com apresentações em Vila Real, Ourém, Aveiro, Coimbra, Santarém e Leiria.