A partir das memórias mais profundas do empresário Rui Nabeiro, José Luís Peixoto escreveu o seu novo romance, "Almoço de domingo", lançado na semana em que o empresário alentejano completou 90 anos.
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Apesar de uma grande parte do livro ser "absolutamente ficcional", o retrato literário " não enjeita as fortes ligações à realidade. "Soube que ele se comoveu com algumas passagens", revela.
Ao convite endereçado por Rui Nabeiro para que escrevesse as suas memórias, José Luís Peixoto respondeu com uma contraproposta: em vez de uma biografia convencional, que diz mais fadada para os historiadores, sugeriu um modelo híbrido, em que a memória e a ficção caminham lado a lado.
Neste "Almoço de domingo", cujo apogeu é o 90º aniversário do fundador dos Cafés Delta, assinalado a 28 de março, o entrelaçamento entre passado, presente e futuro sucede-se, numa vaga envolvente de impressões e memórias que procura saber "o que existe por baixo da vida":
Esta é uma biografia que se lê como um romance ou um romance assumidamente biográfico?
As duas opções são válidas, dependendo da proposta de cada um. É possível fazer-se um romance biográfico e também uma biografia romanceada. Importa saber neste caso qual é o adjetivo e o substantivo. E o substantivo é romance e o adjetivo biográfico, na medida em que uma grande percentagem do livro é absolutamente ficcional.
Essa preocupação de saber se o livro é um romance ou uma biografia é um assunto que prefere deixar para críticos e académicos?
É importante definir este livro como um romance, porque faz toda a diferença na forma como se aborda o texto. Um dos aspetos sensíveis de uma escrita como esta é o risco de andar nos limites do biográfico e do ficcional. Há pessoas envolvidas, não só o Rui Nabeiro como outras, personagens que correspondem a pessoas. Existe uma ambiguidade que me leva a reafirmar o livro como romance. Esta discussão sobre o ficcional e o biográfico existe há muito, mas penso que o livro pode contribuir para reacender esse debate.
Se o seu anterior romance, "Autobiografia", podia ser lido como um jogo de espelhos, qual a ilusão que este "almoço de domingo" poderá transmitir?
No anterior, a dimensão ficcional talvez estivesse um pouco mais vincada. Desde o meu primeiro livro, "Morreste-me", até "Galveias", por exemplo, existe sempre uma dimensão biográfica ou autobiográfica.
Concorda que este livro é mais um capítulo no esforço continuado que tem feito de há vários anos a esta parte de diluir fronteiras não só entre o real e o ficcional, mas também entre espaços e tempos?
Acho que sim. Sem querer levantar o véu para quem não leu o livro, mas, no que diz respeito ao cruzamento de espaços e dimensões, há uma omnipresença da memória ao longo da narrativa.
Cada vez mais, um novo livro tem que ser um desafio adicional para si?
Isso é muito importante. Na verdade, sem querer exagerar, é quase como uma droga, porque temos que ir subindo cada vez mais. Pelo menos, tenho que sentir isso, para torná-lo cada vez mais intenso e colocar-me problemas cada vez maiores.
Essa subida da fasquia serve para evitar que se sinta confortável?
Não quero ser mal interpretado, mas não tenho nada contra o conforto em literatura. Tenho romances desconfortáveis, como "Uma casa na escuridão", que me deixam um pouco constrangido pela forma como agride os leitores. Ainda assim, sobretudo em alturas como esta, haver leituras que nos confortem também é um direito do leitor. Para quem escreve, tem que existir essa ambição. Na própria vida, também queremos chegar sempre mais longe.
Escrever um livro acerca de alguém que ainda está vivo mudou algo no processo?
Mudou, porque é preciso ter uma sensibilidade em relação às memórias dos outros. O livro toma abertamente a visão do Rui Nabeiro. Em certa medida, é uma descrição do que aconteceu tal como ele o recorda.
Este livro não existiria sem o convite que ele lançou para que escrevesses a sua biografia?
O convite surgiu em 2019, numa altura em que estava muito entusiasmado com esta forma de escrita ligada ao factual e biográfico. Estava bastante disponível para um novo projeto. Quando fui ter com ele, falou-me do gosto que tinha de que as suas memórias passassem para um livro. Logo nesse momento percebi que havia ali um potencial incrível, além do interesse todo em privar com uma pessoa com tamanha experiência de vida.
O que ele tinha em mente era uma biografia?
Era. Mas lá está: uma biografia é do âmbito da História. É um tipo de leitura de que gosto, mas não me sinto com competência para escrever uma biografia. Como acreditava que podia apresentar um trabalho mais interessante na literatura, foi o que lhe propus. Ele entendeu essa ideia e avançámos. Fomos tendo encontros, durante os quais procurei que me desse elementos que não encontrava noutras fontes. Existe muito material sobre a vida do Rui Nabeiro, como entrevistas, vídeos, mas havia circunstâncias pessoais que tentei recolher a partir das conversas.
Como é que ele se viu nesta espécie de retrato que fez?
Ele foi sempre muito esquivo nas suas opiniões, porque dizia que não eram relevantes do ponto de vista literário. Houve poucos pontos em que pediu correções, sobretudo datas e nomes. Soube que ele se comoveu com algumas passagens, não porque ele mo tivesse dito, mas porque outras pessoas me confidenciaram isso. Estou convencido que apreciou.
Entre a imagem inicial que tinha do Rui Nabeiro, o empresário, e o homem que ficou a conhecer melhor ao longo do processo de escrita do livro, quais as principais diferenças?
O que faz diferença é a dimensão humana. Somos do mesmo distrito e, talvez por isso, sempre ouvi histórias acerca do Rui Nabeiro, muitas delas mitológicas, relacionadas com a sua generosidade. É uma figura muito particular. Não o conhecia. Só tinha estado na sua presença uma vez. O que começou por ser uma mudança foi assistir à forma como lidava com as questões pessoais.
Há parágrafos que definem um livro. No caso deste, há logo a abrir uma frase marcante, que se inicia com: "O passado tem de provar constantemente que existiu". É aí que entra a literatura? Ou é por isso que a literatura também é importante, ao permitir que realidades frágeis, transportadas apenas por uma pessoa, não desapareçam precocemente?
Uma das ideias essenciais da literatura, na sua natureza mais profunda, é a de fixar. A ideia de deixar para que outros tenham conhecimento. Por isso é que a escrita e os livros foram um momento evolutivo tão importante na História da Humanidade. A partir do momento em que o conhecimento foi fixo podemos contar com o conhecimento do passado e evoluir a partir daí. Por isso é que o 'leit motiv' deste livro é o 'lembrou-se'. O passado ajuda a construir a nossa identidade e tem uma importância enorme no presente. Como dizia Faulkner, o passado nem sequer passou ainda.
Por falar na capacidade da literatura de servir de registo de algo que tende a perder-se: a importância da memória não é uma preocupação recente nos seus livros. Sentes que os avanços (neste caso, recuos) da sociedade - como a gentrificação, a solidão - tornam este tema cada vez mais premente?
Claro, a memória é fundamental para que possamos aprender com a experiência e crescer. Além disso, a memória tem uma ligação muito próxima com a literatura porque ela é a literatura que todos construímos. Todos somos ficcionistas das nossas próprias memórias, pela gestão de informação que fazemos.
Este livro não pretende ser uma biografia convencional de rememorar exaustivamente os episódios da vida de alguém. Quis saber sobretudo "o que existe por baixo da vida", como o Rui Nabeiro pergunta no fim?
Não podemos falar deste livro sem falar de Rui Nabeiro, mas ele pode ser lido por pessoas que não o conheçam.
Essa é uma questão para a qual continuamos sem resposta?
Quando pensamos acerca das nossas questões deparamo-nos sempre com dúvidas, para as quais não temos respostas definitivas, mas que ainda assim vale a pena contemplar. Quando éramos adolescentes, tínhamos certezas absolutas. Depois, à medida que crescemos, vamos vendo que o mundo é paradoxal e contraditório. Sinto que manter essa vontade de colocar as perguntas impossíveis é importante a fim de mantermos uma certa estabilidade. "Quem sou'" é uma pergunta que não tem resposta definitiva, mas, ainda assim, não devemos deixar de colocá-la diariamente na nossa relação com os outros e com o mundo.
Quão diferente será este livro para quem parte para a leitura sem a informação de que se trata de um projeto biográfico em torno de uma figura real como Rui Nabeiro?
Acredito que faz muita diferença. Mas isso é uma circunstância da receção de um texto. O livro deverá chegar a lugares onde o conhecimento da sua figura é reduzido, como o Brasil. É curioso que falemos de Rui Nabeiro mas no livro ele é referido sempre como Senhor Rui, o modo como o tratam quase todas as pessoas que o rodeiam. Ele é um arquétipo, um homem de 90 anos com esta história. Já tenho uma experiência prévia parecida, como foi o meu romance "Galveias", que na minha região é lido de determinada forma e, fora desse contexto, de modo diferente.
Chegar aos 90 anos e acordar sem idade, como acontece com o protagonista do livro, é um feito só ao alcance das vidas plenas?
O tempo é a grande pergunta. A forma como olhamos para ele. Ele não é tão objetivo como nós. A nossa perceção do tempo é afetada pelas nossas emoções. Ao escrever este livro não consegui deixar de imaginar-me com 90 anos. É transcendente pensar que um dia serei uma pessoa de 90 anos, como já fui uma de 20. Esta posição perante o que consideramos ser o tempo de vida é fundamental e marca profundamente a nossa postura e tudo o que conseguimos ser. Sinto que os exemplos podem ser intemporais, mas os seres são condicionados pelo tempo e pela biologia.
À medida que avançamos na idade, as perdas dos que nos são próximos vão-se somando. Acha que é isso que verdadeiramente nos derruba, mais até do que o passar dos anos?
Há uma frase no livro a que atribuo particular importância: "Para ser patriarca é preciso em primeiro lugar sobreviver". Ao escrever este livro reforcei a crença de que vivemos muitas vidas e somos muitas pessoas. Não só porque estamos em circunstâncias diferentes, mas porque a nossa vida também nos obriga a isso.
Associamos uma biografia ao passado, mas este "Almoço de domingo" convoca também o presente e até o futuro imediato. Foi uma estratégia narrativa ou um esforço consciente para, através destes elementos, apresentar um retrato mais completo sobre o biografado?
A atividade toda que ele ainda tem foi decisiva. Imaginamos que um homem com esta idade já tenha um ritmo de vida mais moderado, mas a verdade é que foi difícil encaixar os encontros que tive com ele, dada a sua agenda apertada. Mesmos nestes tempos, ele tem sempre encontros e projetos. Não podemos deixar de olhar para o futuro. O futuro entrou por via da inspiração dele, porque, embora tenha referido muito o passado, sempre falou do presente e do futuro.
De livro para livro, sente que o romance vai sendo cada vez mais a sua casa literária, juntando-se à poesia, que é a sua raiz?
Esse livro foi escrito no hiato da escrita de um romance. Quando tudo parou, em março, houve um tirar de tapete que me fez ter dificuldades em lidar com ele. Interrompi então a escrita deste livro. Foi uma conveniência escrever esse livro de poesia. Foi uma necessidade de consolo. A vida tem-me levado para o romance. É nesse género que consigo aproveitar todas as experiências que vou tendo. Tenho tido múltiplas experiências de escrita, como o teatro, a crónica, e sinto que consigo aproveitar essas experiências de forma muito direta para o romance. Já a poesia, é uma outra forma, infelizmente para a qual nem sempre tenho disponibilidade. Requer uma disponibilidade particular, até anímica. A poesia que escrevo tem uma certa continuidade. Entre o primeiro e o último há 20 anos de diferença mas nota-se que foram escritos pela mesma pessoa. Já na prosa, tem existido uma evolução mais marcada em função da quantidade que tenho escrito e das múltiplas experiências marcantes. Fiquei feliz de publicar esse livro. Gostava de voltar a publicar poesia brevemente. Ocupa um lugar muito especial e propicia uma comunicação com as pessoas que leem os meus livros a um nível muito importante.
De uma agenda sobrecarregadíssima como tinha até 2019, carregada de eventos, passou, como qualquer escritor requisitado, para o oposto. Todo esse tempo subitamente livre ainda lhe causa estranheza?
Agora tenho que gerir os compromissos online.
Mas poupa tempo nas viagens.
Sim, embora um dia com dois compromissos online seja um dia em que já pouco se escreve. Tenho saudades dos compromissos, porque eles são um alimento. Já tinha os métodos organizados para aproveitar as viagens entre a escrita e a leitura. É um momento em que é difícil olhar para o futuro. Não há muitas certezas e isso é desestabilizador. Usei a escrita para lidar com a pandemia, serviu para alhear-me desta situação claustrofóbica. O resultado são dois títulos publicados em pandemia, o que é pouco comum. O que mais quero é poder ter encontros com leitores, ir a escolas e ter tudo isso. Há dias em que estou mais animado.
Teme que as marcas do que temos vivido se irão prolongar para lá da própria pandemia?
Espero que não. Neste momento, o que mais me aflige é sentir que este é um tempo, a muitos níveis, perdido. Pessoalmente, sentia que isto podia levar-nos a valorizar coisas que tínhamos e dávamos por adquiridas, mas acho que já chega. Era muito bom se conseguíssemos ultrapassar a situação. Eu ainda tenho a ilusão de dispor de tempo suficiente para viver a vida. Ainda assim, vejo outras pessoas, mais velhas, a quem tal não será possível e isso custa-me.