Juliana Linhares: “Eu, que moro longe da minha casa, sei bem o que é a saudade”
Artista, cantora, compositora, atriz, nome essencial da nova cena musical brasileira, tendo já colaborado com artistas como Zeca Baleiro, Juliana Linhares está de volta a Portugal: atua sexta-feira no MIMO Amarante, exatamente um mês depois de ter passado pelo MIMO Brasil.
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Nascida no nordeste brasileiro, Juliana é uma das vozes mais marcantes do momento no seu país e além-fronteiras, muito por conta de “Nordeste ficção”, primeiro disco a solo (depois de ter estado nos Pietá), concebido como um roteiro de teatro, romance de autoficção e docudrama, reinventando a cultura nordestina e os estigmas em seu redor, uma história que é também contada em palco.
A teatralidade é para Juliana base e raiz, pelo que nos palcos transforma-se, e transforma cada atuação numa experiência arrebatadora. Ao JN, explica como tudo começou.
Esta noção de que ajudou a reconfigurar a compreensão do Nordeste brasileiro; porque se lançou nesse propósito?
Nenhum trabalho é feito sozinha. Esse trabalho de redesenhar um pouco o Nordeste na cabeça das pessoas, principalmente aqui no Brasil, onde essa discussão é muito grande, está muito em voga, ele é um trabalho de muita gente, de muitos artistas, pensadores que vêm antes de mim. Então não sinto que fiz isto sozinha em tão pouco tempo. Bebo numa fonte de muita gente que vem repensando esse lugar do Nordeste. Acho que fazemos isso, porque sentimos na pele, muitas vezes, o lugar onde nos colocam por pensarem o Nordeste de maneira equivocada. Então nós, como nordestinos, vimos, de diversas maneiras, reafirmar algumas coisas e trazer novidades, para que as pessoas nos olhem de outra maneira e consigam nos deixar estar onde quisermos, sem questionar tanto ou sem encaixotar as nossas investidas artísticas e pessoais.
Sente que os objetivos têm sido cumpridos, que há um novo olhar, novas perspetivas, além dos clichés?
Olha, acho que o mundo mudou muito, o Brasil mudou muito. E com a conectividade, a internet cada vez mais acessível, mais rápida, temos entendido que alguns assuntos, que nunca são todos e há algumas coisas que nunca têm luz, mas outras, acabam a chegar a todo o mundo, muito rápido. E o facto de atores, artistas, pessoas do nordeste que estão a colocar essa pauta em voga, falarem sobre isso, fez com que as gentes do nordeste hoje tivessem essa pauta. Acho, sim, que está mais em diálogo, mais em cima da mesa. Todo o mundo hoje pensa sobre isso, mas não era uma coisa que se pensava tanto há um tempo, porque nem tínhamos entendido isso em coletivo (de que éramos vistos com clichés).
É verdade que o disco arrancou muito com o tema “Bombinha”, do Posada?
“Bombinha” foi uma música muito importante. Ela foi a primeira música que escolhi para o álbum, anos antes, até antes da pandemia. Este é um álbum que lancei em 2021, então ele é um álbum da pandemia e “Bombinha” eu tinha guardada antes. Quando a escutei falei: “Caramba, esta música aponta o meu trabalho solo. Ele vai vir”. Então ela me deu direção, um norte, é por isso que ela abre o álbum. É uma música muito especial para mim, tem uma base de maracatú, que é um ritmo importante para nós e com uma mensagem que tinha muito a ver com tomar as coisas para si, no lugar da mulher, de dizer “agora eu quero fazer o que quiser, vou mandar no meu desejo”. Então achei que esse norte, essa oração, me levou adiante no álbum.
A ideia de fazer um álbum que é também um roteiro de teatro, um romance de autofição e um docudrama, como surgiu?
Acho que a ideia de pensar o álbum com dramaturgia vem do facto de eu ser do teatro. Sou atriz, sou formada em artes cénicas, bacharel em direção de teatro, então todo o meu pensamento artístico passa muito pela base que tive, de formação e a forma que tenho de pensar artisticamente, de construir as minhas ferramentas, os meus caminhos. As minhas etapas de criação, de pensamento criativo, têm a ver com o pensamento do teatro. Desde o início não sabia como ia ser a realização, porque antes de tudo estamos só na cabeça, no sonho, mas tinha vontade de fazer um espetáculo que tivesse essa dramaturgia em cena com força: desde o figurino à luz, ao roteiro, que conseguíssemos ampliar e fortalecer a história do disco. Acho que o “ao vivo” tem muito esse espaço, para podermos trazer mais camadas ao que se ouve no álbum. Acho muito importante o que se constrói visualmente. A visualidade gera muita interpretação importante, o que trazemos visualmente colabora com o que queremos contar na canção.
Os concertos são uma catarse, uma performance também?
É difícil falar de nós, não sei se sou uma catarse, mas acho que quanto mais presente a gente está e mais potente estamos com o uso do nosso corpo criativo, artístico, mais catarses podem acontecer. Sinto que, como venho do teatro que é muito importante para mim, o meu trabalho se completa ao vivo, se faz mesmo na camada que junta a música com a cena. O que se pode esperar é que entreguemos um espetáculo que tem mais informações do que no álbum. Vamos lá, vamos ver se a catarse vai acontecer, mas o meu corpo performático estará lá para que as coisas aconteçam da melhor, e mais forte, maneira possível.
Que marca gostaria de deixar, como gostaria que a recordassem?
É engraçado, não penso tanto no que quero deixar no futuro. Tenho pensado muito no presente, porque tem coisas que são urgentes. Nós só vamos pensar o futuro se no presente conseguirmos fazer transformações para o futuro vir. Estamos a viver um momento (social) muito complicado. Se não cuidarmos do presente com muita urgência, não temos futuro possível. Penso mais em fazer boas escolhas, em estar feliz com as minhas escolhas, em ser correta com o que desejo. Ser minha amiga, da criança que fui: “eu gostava disso, gostava de estar no palco assim, então não me vou trair”. Vou fazer as coisas que sinto que são do meu coração e não só do mercado. Acredito que fazer as coisas que realmente são as minhas crenças, sendo uma artista, vou colaborar com outros artistas, com a sociedade, deixando coisas que são realmente verdadeiras. Penso em estar muito em mim, com o pé no lugar certo, a falar as coisas em diálogo com o tempo. A Nina Simone dizia isso: “um artista que não está em diálogo com o seu tempo…”. Então precisamos estar no presente, em diálogo com o nosso tempo, reverenciando, entendendo o passado sempre, porque é muita gente que forma a nossa base para caminharmos. Mas não consigo só pensar no que quero deixar para o futuro sem estar agora a construir o presente de uma maneira consciente e urgente, nas questões que dizem respeito ao meio ambiente, à política, à humanidade. Precisamos de nos humanizar muito agora e o que precisamos de humanidade. E o que precisamos de deixar é isso: um mundo mais humano, mais sensível com as pessoas e com todos os outros seres.
Da música brasileira, há tantos nomes que parecem também viver na sua música; quem mais a marcou e porquê?
É muito difícil falar de uma pessoa só, mesmo muito difícil. Foram muitos os artistas que me marcaram, mas hoje, porque é hoje, porque estou com ele no meu coração, vou citar Ney Matogrosso, que é um artista que ouvi muito na minha casa. O meu pai é um homem do interior, do Rio Grande do Norte, que é de onde eu sou, o meu estado, de uma família muito tradicional nordestina, essa coisa que ainda vem da cultura do “cabra-macho”. E o meu pai era muito fã de Ney Matogrosso, que trouxe uma irreverência sensual, sexual para o palco e para a música, muito transgressora, muito especial, muito importante. Nós estamos a viver um momento aqui no Brasil de celebração de Ney, porque está em cartaz um filme muito especial sobre a vida dele. Então eu vou citar o Ney, que coloca no palco coisas que muitas vezes não conseguimos colocar e tão importantes para a sociedade, e por ele ser muito “para a frente”. Um artista com coragem de ser irreverente, de ser o que ele é, de trazer uma coisa nova. E a minha sorte de ter vivido Ney dentro da minha casa, em Natal, desde muito criança. Ele é um artista que me forma muito, com quem tenho vontade de cantar e por quem tenho muita admiração.
Do público português, tem recebido carinho?
Sou sempre muito bem recebida, até pelo público que não conhece o trabalho. Acho que há um trabalho de curadoria muito importante em alguns festivais e algumas praças, que fazem com que o público se interesse e que fomenta a música brasileira. Ficamos felizes em sermos recebidos, o público trata-nos sempre bem, tenho fãs que me dão presentes e fico sempre muito feliz. E há também muitos brasileiros em Portugal, que estão com saudades de casa, e podermos fazer essa ponte de levar a música daqui para aí, é muito poderoso, muito importante. Eu, que moro longe da minha casa, sei bem o que é a saudade.
Segue alguém, sonoridades ou artistas de cá que a impactem ou até influenciem?
Há muitos artistas interessantes em Portugal hoje. Vou citar o Salvador Sobral, que é um cantor que me interessa muito, identifico-me muito com ele pela performatividade também. Muito além da voz ser maravilhosa e ter boas composições, é um artista que mergulha na música brasileira, que tem uma pesquisa aqui e que tem um corpo cénico vivo que me interessa muito. Tenho muita vontade de poder trocar mais com ele. Ele é incrível!
Depois deste trabalho, quais os próximos passos?
Próximos passos são: vou fazer “Nordeste ficção” em alguns palcos do Brasil até setembro. Vou fazer um espetáculo muito especial com a Josyara e a Cátia de França no festival Coala e vou fazer disco novo. Estou a preparar-me para entrar em estúdio e ainda este ano vamos ter novidades de um segundo álbum, finalmente. E outros projetos como atriz vão vir aí. E é isso!