Karim Ainouz falou ao JN sobre "Marinheiro das Montanhas", já nas salas portuguesas. O seu mais recente filme, "Firebrand, foi recebido de forma entusiástica na edição deste ano do Festival de Cannes.
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Realizador de títulos marcantes da cinematografia brasileira, como "Madame Satã", "O Céu de Suely" ou "A Vida Invisível", Karim Ainouz partiu em 2019 para a Argélia, terra natal do pai, munido de uma câmara de filmar e da vontade de traçar um retrato familiar. Apanhado no meio de uma vaga de manifestações contra o regime, assina primeiro "Nardjes A.", sobre uma jovem ativista. A pandemia obriga-o a voltar a casa e a repensar o primeiro projeto, que vai ganhando forma até se tornar uma viagem poética pela memória, de um tempo e de um povo, em "Marinheiro das Montanhas". Depois da estreia em Cannes 2022, o filme chega agora aos nossos cinemas, na altura em que Ainouz apresenta no festival francês o seu primeiro filme de ficção falado em inglês, "Firebrand", com Alicia Vikander e Jude Law. Paraa já, recorda-se a conversa que tivemos com o realizador a propósito de "Marinheiro das Montanhas".
Depois de vários contratempos, deve ser um alívio estrear finalmente este filme...
Filmámos em fevereiro e era suposto voltar à Argélia, mas não pude por causa do confinamento. Passei ano e meio a montar o que já tinha filmado e a pensar como é que podia fazer um filme com essas imagens, porque realmente não tinha filmado muito. Foi uma dessas situações em que se transformam problemas em vantagens. Não é um filme de indústria, é feito de forma artesanal. E completamente pessoal.
O filme aborda o percurso da sua família, mas é feito de uma maneira pouco convencional, bastante poética. Como é que chegou a essa forma?
Toda a gente tem histórias familiares, com segredos e mentiras, histórias de amor. A minha não é mais interessante que a sua. O truque era fazer um filme que fosse relevante para as outras pessoas. Quis dar luz a um momento no mundo em que sonhámos algo de melhor e que permitiu que aquelas duas pessoas se conhecessem. Quando estava a montar o filme percebi que não podia ser aborrecido nem didático. E a beleza da poesia é que não sabemos porque nos toca. Simplesmente, toca-nos.
Além de crónica familiar há outros temas que se cruzam no seu filme.
O filme é também uma desculpa para falar de colonialismo. Não através de um discurso, mas das minhas tripas. O colonialismo é uma coisa traumática que vai demorar muitos anos até nos vermos livres dele. O anticolonialismo também tem de ser celebrado hoje, ainda há lutas pela soberania, pela independência.
O Brasil e a Argélia são dois países muito diferentes. Encontra pontos em comum?
Há um paralelo interessante. Houve muitas independências na Argélia, a última foi dos franceses, em 1962. É um país que foi conquistado pelas pessoas. São as pessoas que são donas daquele país. Quando falam da Argélia, é como se falassem dos pais e das mães. É um nacionalismo, mas surge como reação ao colonialismo, é uma coisa muito específica.
E o Brasil, como olha para o seu país quando está de fora?
Há algo em conseguir uma coisa através das veias, em lutar por algo. É a grande diferença. A confusão no Brasil é não se saber de quem é o país. O Brasil é um país muito rico e muito pobre. A história do Brasil e da Argélia são muito diferentes. Na Argélia há pobreza, mas não há miséria. E há algo que se chama dignidade. Enquanto a maior parte da população do Brasil viu ser-lhe retirada a dignidade.
Vê-se pelo filme que foi muito bem recebido pelas pessoas na Argélia.
A Argélia é um país muito isolado. É muito difícil conseguir um visto. Há poucos turistas. Então um tipo chega com uma câmara e que diz que é brasileiro. Eles adoram o Brasil, por causa do futebol. E a Argélia acolheu muita gente de esquerda que lutou contra os militares no Brasil dos anos 60. Há um sentimento de irmandade, de solidariedade. Quando disse que o meu pai era de lá, as portas escancararam-se, os braços abriram-se.
O filme vai ser visto na Argélia?
Seria tão importante que fosse visto na Argélia, como em França, onde há uma enorme diáspora argelina. Que tem sido privada de imagens da sua própria história. Precisam de ter orgulho na sua história. A grande lição que retiro deste filme é o quanto não sabia, o quanto não me disseram. E não estou a julgar o meu pai, os meus tios, os meus avós, por não me contarem nada. Tento perceber porque não o fizeram. A juventude da diáspora argelina está completamente afastada da sua cultura.
Quando falou de futebol, lembro-me que o Karim deve ser o único brasileiro que não gosta de futebol...
Eu fui criado numa casa onde não havia homens. O futebol é um espetáculo muito masculino. Só havia mulheres, que não se interessavam por futebol, mas por outras coisas. Nunca estive num estádio de futebol na vida. Nunca me interessou. Preferia dançar. Mas compreendo a beleza do futebol. Em 1970 o campeonato do mundo foi aproveitado pelos militares. A minha mãe não foi perseguida, mas muitos dos seus alunos foram mortos.
Mas parece que até fez um filme sobre futebol...
Um produtor contactou-me para fazer uma coisa para a televisão, no Brasil. O que escolhi fazer foi olhar para um bairro nos subúrbios de Fortaleza, de onde eu sou, e fazer um filme sobre os miúdos que estavam a aprender a jogar futebol, como forma de se sentirem mais bem integrados na comunidade, em vez de se meterem nas drogas ou na criminalidade. Acho que há coisas boas na socialização nos desportos.
Depois de "Nardjes A." e deste filme tornou-se viciado no documentário?
Quando tive de inscrever o filme em Cannes o formulário perguntava se era ficção ou documentário. Mas acho que isso é cultura binária. Não acredito nessa distinção. O meu filme também é ficção, há muita coisa que é construída. Há temas que se adaptam melhor a um tipo de filme e outros temas a outro tipo diferente. É o mercado que está a dizer-me, não faças isto outra vez. É difícil de vender. Sou o mesmo tipo que fez o "Vida Invisível" e que vai fazer um filme sobre uma Rainha em Inglaterra.
Não me respondeu se tinha ficado viciado...
Mas a sua pergunta tocou-me. A resposta é: talvez. Há qualquer coisa em trabalhar no documentário. Talvez esteja mais perto da minha vida, do que eu sou. Não tenho carro, não sou dono de um apartamento, arrendo um. Estou feliz com a vida que tenho, não depende do grande capital. Este projeto foi terminado numa pequena sala, com dois montadores e uma assistente ao meu lado a tomar notas. Ia a pé para o estúdio, nem tinha de pegar na minha bicicleta. Não é que fazer documentários seja mais divertido, mas é mais caloroso. Não quero deixar de os fazer.
De qualquer forma este filme não poderia ser feito em ficção.
Seria impossível. É muito difícil filmar na Argélia. São muito protetores de para onde é que se aponta uma câmara. Mas é verdade que tenho um projeto que um dia quero fazer lá, a história dos meus pais, de um ponto de vista ficcional. De certa forma, o meu pai foi raptado pela revolução. Há um conflito interessante, entre o pessoal e o político. Há algo nessa história de que me interessa falar.