Cantora norte-americana Kavita Shah está em Portugal a apresentar o disco “Cape Verdean blues” – uma homenagem ao arquipélago e a Cesária Évora, que diz ter mudado a sua vida. Os espetáculos são a 1 de novembro no CCB, 2 na Casa da Música e 3 em Lamego.
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Kavita Shah é a personificação de uma artista global. Nova-iorquina, de origem indiana, poliglota (fala nove idiomas), uma curiosa e estudiosa ávida e confessa de culturas, tradições e sonoridades, Shah está em Portugal a promover o disco “Cape Verdean blues”. Os concertos estão marcados para o dia 1 de novembro no CCB em Lisboa, 2 na Casa da Música do Porto e 3 no Teatro Ribeiro Conceição em Lamego.
No final de setembro, a premiada compositora e cantora de jazz editou o seu novo disco que é uma “homenagem a Cesária Évora, e uma carta de amor ao arquipélago de Cabo-Verde”, descreve. Contando com participações de Bau, antigo diretor musical de Cesária e que também acompanha Kavita na estrada, e de Miroca Paris, que tocou com a artista cabo-verdiana e com Madonna, o álbum inclui mornas e coladeiras tradicionais, algumas cantadas em crioulo.
A fluidez e naturalidade com que Kavita Shah assume e canta estes sons tão distantes da sua origem não surpreenderão quem conhece o seu trabalho, que sempre se enraizou na tradição do jazz enquanto incorporou pesquisa etnográfica na música original, tendo a artista já explorado e incluído práticas musicais tradicionais do Brasil, África, Turquia e Índia. Até ao momento, os seus projetos incluem “Visions” (2014), co-produzido por Lionel Loueke; “Folk Songs of Naboréa”, que estreou no Park Avenue Armory em 2017; e “Interplay” de 2018, em duo com François Moutin.
Sobre o novo disco e a ligação a Cabo Verde e Cesária Évora, explica ao JN como tudo começou – e fá-lo num português fluente, uma das várias línguas que domina e que é aliás, para si, “casa”, como nos conta.
“Primeiro, o importante é lembrar que a música lusófona foi sempre uma parte grande do meu percurso, porque eu estudei português e vivi em Salvador da Bahia, Brasil, quando tinha 20 anos. E eu decidi ser música quando estava a morar em Salvador e quando eu estava a fazer uma pesquisa sobre a música afro-brasileira. Então, para mim, a música lusófona sempre teve uma parte muito importante no meu coração, no meu percurso e na minha identidade, como pessoa e como artista”, começa por revelar.
Shah diz referir isto porque a conexão com Cabo Verde começou no Brasil: a artista ouviu primeiro Cesária Évora quando era uma estudante universitária, em Havard, numa altura em que lamentava uma série de perdas (incluindo a do seu pai e quatro avós) e o som de “Sodade” teve um grande impacto. Mas foi meses depois, na sua pesquisa em etnomusicologia em Salvador, que a artista teve a oportunidade de ouvir Cesária ao vivo, e disso nunca se esquecerá. "O que me impressionou nela foi a sua
autenticidade. Vê-la mudou tudo, marcou-me de uma forma muito grande. Porque eu senti um poder muito grande na voz dela e na personagem dela. Na presença dela”, refere. E acrescenta: “eu senti que ela tinha um poder enorme, mas não por ser uma entertainer. Só por ser ela mesma, autêntica. A cantar descalça, sem piano, a nu, em frente a um público. Só com o seu corpo lá. Ela não fazia nada para distrair. Não sorria, dançava. Era só ela mesma. Estando lá, sabe? E cativava a atenção de todos”, relata sobre o impactante momento.
Kavita faz um desvio para falar de uma outra viagem, a tudo isto associada, anos antes, mas que também impactou profundamente a sua vida e ajuda a explicar a sua curiosidade pela lusofonia. “Quando eu era criança, eu fui para Goa com a minha família. Fomos de férias para Índia, para Mumbai de onde são meus pais e visitamos Goa. Foi a minha primeira vez fora do mundo anglófono e marcou-me muito, essa viagem. Foi um contato muito importante para mim. Eu falo muitas línguas, eu viajo muito, eu considero-me uma cidadã global, mas eu sinto-me muito em casa a falar português, a cantar em português. É uma coisa, uma sensação de lar. É diferente das outras línguas. É como se fosse uma parte de mim, um conforto, que eu tinha descoberto logo ali”, adianta.
A ida a Cabo Verde
Anos depois do primeiro impacto e descoberta de Cesária Évora, Shah fez uma pausa no seu estudo do Brasil e da musicologia, para aprofundar o conhecimento do jazz e iniciar a sua carreira. Mas em 2016, já depois da morte de Cesária, decidiu finalmente visitar Cabo Verde. “Eu estava mais dedicada ao jazz, essa viagem a Cabo Verde foi depois de eu me estabelecer um bocadinho no jazz. E foi uma... foi como um retorno. Mas eu não tinha nenhuma expetativa daquela viagem. Foi para descobrir”, conta.
Numa feliz coincidência, acabou por se tornar amiga do diretor musical e guitarrista de Cesária Évora, Bau. “Eu tive a enorme sorte logo de encontrar o grande Bau. Fui a uma loja comprar um cavaquinho e perguntei para o senhor, chama-se Aniceto Gomes, é muito conhecido, quem me poderia dar umas aulas, porque eu queria descobrir a música de Cabo Verde. E ele disse, ‘olha, nós temos o melhor cavaquinista aqui em São Vicente, o Bau’. Então eu encontrei-me com ele, mas não sabia quem ele era: que era o diretor da Cesária, que tocou no filme de Almodóvar, não sabia de nada. E assim que cheguei a casa dele, vi o retrato da Cesária na parede e percebi. Depois eu ouvi-o e deixei o cavaquinho de lado. Porque eu já só queria cantar como ele. Porque percebi que era um mestre”.
Foi desta química que nasceram, primeiro, sessões informais de improvisação, depois atuações ao vivo e finalmente o “Cape Verdean blues". O álbum conta com membros da banda de Cesária, incluindo o percussionista Miroca Paris, e a pupila de Cesária e aclamada vocalista, Fantcha. Foi gravado no Mindelo, Lisboa e Nova Iorque, e inclui repertório tradicional em crioulo cabo-verdiano, uma canção original recém-escrita com letras de outra lenda, Morgadinho, um clássico brasileiro, e uma canção popular indiana em Gujarati, a língua materna de Shah.
Apesar da sua óbvia facilidade com línguas, aprender o crioulo não foi no entanto fácil, conta-nos. “Comecei a perceber o crioulo logo naquela primeira viagem, ao ouvir muita música, ao trabalhar com o Bau e com outros músicos que eu cheguei a conhecer. Mas foi depois, em 2018, quando voltei para Cabo Verde através da Jerome Foundation, que fiz uma pesquisa mais elaborada. Sobre a vida da Cesária, sobre a música tradicional, a morna, coladeira. E foi naquela altura que eu também fiz aulas de crioulo. E ainda tenho coisas para aprender. É uma língua que não é muito fácil, não”.
A “Sodade”
Durante a vida de Kavita, tem havido sempre um paralelismo entre a carreira de artista e esta sua curiosidade, a procura, o estudo das etnologias. Diz que tudo faz parte de si e da sua vida artística, do processo. “É o meu jeito. Eu sempre fui assim, eu sempre fui muito curiosa, sou uma pessoa que levanta muitas questões e que não fica satisfeita com a primeira resposta. Quero sempre saber porquê e qual é a razão”, conta a cantora, qua chegou a trabalhar como jornalista.
Mas admite que tem a ver também com uma sensação de “saudade” de algo. “Eu sou muito nova-iorquina claro, mas não diria que me sinto muito americana. Não diria que me sinto indiana. Eu sou uma pessoa... global”, refere. “Eu estou interessada em tudo, em como são os espaços entre uma identidade e outra, como são os espaços onde há várias coisas que se mexem, como nas cidades cosmopolitas, tal como Lisboa, tal como Nova Iorque. E eu sinto que, na verdade, isso é um aspeto muito importante de Cabo Verde, porque Cabo Verde é um país crioulo. É um país que tem muitas influências do mundo todo, por causa de ser um arquipélago, por causa de ter sempre idas e voltas, do lado africano, português, inglês. Eu sinto que é um lugar muito aberto ao mundo e que tem muitas conexões com todo o mundo. Então, faz muito sentido que eu me sinta tão ligada aquela música e que eu me sinta muito em casa em Cabo Verde, porque tem a ver com humanidade”.
No coração do álbum de 12 músicas está sempre presente este tema que vai referindo de passagem, a tal “Sodade” de Cesária ou “saudade” tão lusófona, sentimento e palavra sem tradução em inglês.
Sobre como a sente – e como a explica, por exemplo aos norte-americanos – Kavita admite dizer sempre “que é uma sensação de nostalgia para alguma coisa que não existe mais”. E conclui: “para mim, quer dizer que a saudade com quem eu cresci foi uma saudade para uma Índia que já não existe mais. Era a Índia dos meus avós, dos meus pais. Mas se eu vou para a Índia agora, já mudou. E para mim, tendo tido muitas perdas, os meus pais, meus avôs, muito jovem, eu perdi a conexão com aquela terra. Mas eu sinto que ela existiu ou de certa maneira está lá, e isso é também a saudade”.