De regresso aos palcos portugueses, na companhia do filho, Bruno Giorgi, o músico e compositor Lenine diz que o Brasil "está a viver um tempo épico", por ter afastado Jair Bolsonaro, cujo nome se recusa sequer a pronunciar. No sábado atua em Miranda do Corvo e no domingo no Porto.
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Ultrapassada "a pandemia e o pandemónio", Lenine regressa em força aos palcos, um espaço que considera "sagrado".
Durante o longo confinamento, o músico preparou com o filho Bruno Giorgi o espetáculo "Rizoma", que passa neste sábado pela Casa das Artes de Miranda do Corvo e domingo pela Casa da Música, no Porto.
Ao contentamento pelo regresso aos palcos soma-se a alegria pela vitória de Lula da Silva e, sobretudo, a derrota do ainda presidente, Jair Bolsonaro, que acusa de ter feito o Brasil recuar "500 anos".
Costumamos associar o conceito de "Rizoma", título do espetáculo que traz a Portugal, à botânica e à filosofia. Por que o transplantou para o plano musical?
O espetáculo é uma mistura desses dois conceitos. Remete em primeiro lugar para a botânica, para tentar perceber de que maneira as raízes crescem e evoluem. Mas também gosto muito da forma como o Deleuze se apropriou desse conceito para defender filosoficamente o rizoma como o lugar onde surge a ordem no meio do caos.
Para si, a música deve ter muitos rizomas, ou seja, ramificações e ligações?
Acredito que sim, até porque neste espetáculo trouxemos para o palco um pouco de cada ambiente sonoro criado originalmente nas gravações das canções escolhidas. Por isso, trouxemos para o palco um pouco do trabalho dos produtores anteriores que me ajudaram a fazer os discos, o que contribui para que a música e os arranjos se recriem, como acontece com o rizoma.
Uma das grandes novidades da digressão é a presença em palco do seu filho, Bruno Giorgi. É um espetáculo familiar na verdadeira aceção do termo?
Mais do que familiaridade, o que existe no "Rizoma" é uma intimidade que não seria possível sem a relação entre pai e filho, mas também de produtor, há mais de dez anos. Só foi possível realizar o disco durante a covid-19, que no caso do Brasil foi uma pandemia e um pandemónio. O isolamento permitiu-nos conceber um espetáculo que tornasse possível recomeçar a trabalhar com música.
Chegou a fazer 'lives', como muitos outros artistas?
Essa é a questão. As 'lives' não me deram alívio. Foi deveras difícil, porque estávamos a atuar para uma câmara ou telemóvel, mas sem conseguirmos repetir de forma alguma o exercício de tocar ao vivo, que passa por partilhar e suar em conjunto. Por isso, é que estamos a recomeçar e não a retomar o trajeto. Estamos todos a reaprender a fazer 'shows', a fazer discos, a criar, em suma.
Esse recomeço tem possibilitado uma redescoberta?
Na verdade, sempre fiz isso ao longo da minha vida. Sempre me propus trilhar outros caminhos. Tento colocar-me numa posição pouco confortável, porque me obriga a ir mais longe.
Está habituado a trabalhar com o seu filho no estúdio. Como foi essa transposição para o palco?
Já partilhamos o palco há dez anos, mas estávamos habituados a que isso acontecesse com um grupo maior de pessoas à nossa volta. Fui-me acostumando com o tempo a ter um filho junto a mim a fazer música. No início, era difícil, e isso podia levar-me a falhar uma letra, porque constatava que estava ali um pedaço de mim. Agora já me habituei e o que acontece mais é diversão e intimidade.
Filho de peixe sabe tocar?
Tenho três e todos foram contaminados pela música. O Bruno desenvolveu também outros interesses, não diretamente relacionados com os atos de tocar e cantar. Além de produtor, é misturador, masterizador e tem interesse no 'hardware' que rodeia a música. Essa versatilidade dele é-me muito útil.
Vê-se mais como um músico de palco do que de estúdio?
O palco é a finalidade de tudo o que faço, mas tenho um prazer enorme nas outras etapas do processo.
A criação?
Sim. Tenho primeiro que fazer um disco para gerar um reportório que permita o show. É outro processo, em que estamos no estúdio a procurar por uma beleza que não sabemos onde se encontra. Também é muito cativante. O concerto é a finalidade de tudo, onde acontece o grande ritual da minha vida.
Como tem sido esse regresso a temas antigos que a nova digressão encerra?
É sempre muito estimulante voltar a canções que em muitos casos já atingiram a maioridade. Com a pandemia e o isolamento a que fomos forçados, muitas das canções ganharam uma compreensão diferente, porque as palavras ganharam outro sentido. Uma canção como "Paciência", que teve um grande sucesso e foi gravada em Portugal pelo João Pedro Pais, fala da procura interior e acabou por ganhar uma nova perceção junto das pessoas. Tornou-se uma espécie de hino durante a pandemia. Foi incrível.
Com todas as dimensões traumáticas que trouxe, a pandemia serviu para que as pessoas valorizassem mais a música e sobretudo a experiência de a ouvir ao vivo?
Imagino que sim, mas também é preciso dizer que precisamos de algum tempo para assimilar primeiro o que isso significou na vida de cada um, mas também na Humanidade. Mas sem dúvida que a cultura e a arte ganharam outro peso.
Há uma mensagem de energia e até vibração ao longo do disco. Os problemas e as angústias ficam à porta quando chega a altura de compor e tocar?
Depende muito de como me encontro na altura. Como está a minha antena e a minha raiz, que são as duas conexões essenciais para que possa fazer música. Ao longo dos anos nunca me distanciei do meu comprometimento com a crónica. O que faço é crónica musical. Os temas podem ser do foro íntimo, mas também podem ser sobre algo mais corriqueiro. Um episódio que vi na rua pode motivar-me para a escrita de uma canção. Sinto-me um cronista da minha época, fazendo das minhas canções o relato pessoal do que vejo.
Nos últimos anos, a situação política e social no Brasil foi marcada por uma grande fricção. Agora que as eleições já se realizaram, o que espera?
Estou muito otimista. O Brasil estava na idade das trevas, mas finalmente saiu de lá. Recuou 500 anos, mas finalmente voltou. Tecnicamente ainda estamos sob o domínio de um fascista, que impôs uma enorme violência, crueldade e canalhice na sociedade brasileira. Houve um grande alívio, porque, apesar da máquina governamental estar ao serviço de um ser humano inominável, o Lula ganhou. Se a História fosse escrita por um argumentista de telenovela, as pessoas não iriam acreditar, por ser demasiado inverosímil. Estamos a viver um tempo épico. É o retorno a um caminho coletivo, a celebrar a tecnologia do afeto. O Brasil estava a precisar disso.
A vitória foi muito curta. Não teme que os 49% que votaram em Jair Bolsonaro perpetuem essa divisão na sociedade?
Desses 49%, só cerca de 20% representam a extrema direita, uma percentagem semelhante à que se verifica noutros países. É um movimento que aproveitou as plataformas sociais para abalar a credibilidade de tudo. Os restantes 29% foram manipulados por essas "fake news" que estão por todo o lado. Não imagina a quantidade de notícias inventadas e manipuladas nos últimos tempos. A parte boa é que, apesar de toda essa campanha, o Lula ganhou. E por uma maioria. O que achei mais interessante é que, no seu primeiro discurso, Lula disse que iria governar para todos os brasileiros e não apenas para os 49% que votaram nele. Foi uma atitude humana, oposto à daquele indivíduo de que me recuso a dizer o nome. Parte dos que votaram nesse candidato vão descobrir com o tempo o quanto foi manipulado e ludibriado. O próprio tempo vai ajudar a resolver. Estamos a reaprender a reafirmarmo-nos como nação e projeto de Humanidade. Não temos dúvida que o Brasil tem um papel a desempenhar no Mundo e ele passa pela tecnologia do afeto. Temos que exportá-lo para o Mundo todo e ajudar a acabar com essa desigualdade.
Crê que ela se agravou nos últimos quatro anos?
Sim, mas mais do que isso o que houve foi a instituição da violência pessoal. Conseguiram armar todo o mundo. Foram mais de 200 decretos assinados com o objetivo de afrouxar a regulação ambiental, por exemplo.
O que ainda move hoje quem tem uma carreira tão longa e apetrechada como a sua?
É uma conjugação de inspiração, transpiração e conspiração, porque a música, para mim, é quase como uma religião. Subir no palco é como estar uma relação com o divino. Percebo quando a plateia e eu transformamos aquele lugar, fazendo com que tenha uma dimensão maior. Chegar perto desse sentimento é o que manteve na estrada e a fazer discos este tempo todo.
O Brasil perdeu há dias uma grande referência, Gal Costa. Continuam a surgir talentos ou essas referências deixam um vazio por preencher?
A cultura brasileira é como o Brasil: está em eterna transformação. Ser um celeiro de talentos tem a ver com as grandes dimensões do país. Nós somos um continente. Um brasileiro médio não conhece a estética do frio do sul do país. Por outro lado, alguém do Rio de Janeiro só tem uma ideia vaga da cultura amazónica, com todos os seus sabores. O Brasil ainda está a conhecer-se. Em todas as regiões surgem criadores novos, estilos musicais novos e isso não mudou. Permanece.