Obra apreendida pela PIDE em 1968, acusada de obscenidade, é hoje reeditada pela Porto Editora.
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A PIDE decidiu que era identificável na obra "uma evidente carga de pornografia, o que não podia de forma nenhuma ser tolerado". E com a tacanhez habitualmente exibida por essa tenebrosa DGS, apreendeu os 1500 exemplares de "Apresentação do rosto", assim que Herberto Helder a publicou, em 1968, pela editora Ulisseia.
Mais de cinco décadas depois, por iniciativa de Olga Lima, viúva do poeta desaparecido em março de 2015, "Apresentação do rosto" vai ser reeditado, usando anotações registadas num exemplar guardado por Herberto na "arca" onde deixou organizado o seu legado literário não publicado.
A obra é a segunda a nascer desse arquivo, seguindo-se a "Letra aberta" (2016), construída a partir dos cadernos do autor. Sabe-se que "Herberto Helder era muito cuidadoso e destruía tudo o que não lhe interessava", vincou ao JN Manuel Alberto Valente, diretor editorial da Porto Editora. "Isso tem um significado: ao deixar guardado o exemplar, não quereria que o livro desaparecesse", acrescenta, notando ainda que "não se está a publicar nada que não fosse já público". A primeira e única edição é rara, mas continua a surgir em alfarrabistas.
A hipótese de o voltar a editar não colocou por isso dúvidas à editora, assim que Olga Lima a propôs. O poeta não regressou em vida a "Apresentação do rosto" com intenção de o publicar de novo, mas o seu interesse nessas linhas manteve-se: Herberto usou fragmentos do texto noutros títulos, como os fundamentais "Os passos em volta" (a partir da 3.a edição, de 1970) ou "Photomaton & Vox" (1979).
"Grande obscenidade"
A edição de "Apresentação do rosto" aconteceu no mesmo ano em que o autor foi condenado por estar envolvido na publicação de "Filosofia de alcova", de Marquês de Sade, pelas Edições Afrodite, de Fernando Ribeiro de Mello.
O despacho de proibição, registado a 22 de julho de 1968 (e recordado pela Lusa), escreve que o livro é uma "autobiografia do autor, que é de índole esquerdista, escrita em linguagem surreal e hermética, que como obra literária não mereceria qualquer reparo, se não apresentasse passagens de grande obscenidade".
O livro agora reeditado pode ser colocado no mesmo plano de outros títulos de referência do poeta nascido no Funchal em 1930, que teve um percurso tão discreto publicamente quanto profícuo: produziu cerca de 40 títulos, de 1958 a 2014, que o tornaram no poeta essencial da segunda metade do séc. XX e um autor que deixou uma das obras mais expressivas e significativas da literatura portuguesa.
Um epíteto unanimemente atribuído, mesmo que tenha evitado a todo o custo o reconhecimento público, uma vontade que o levou a surpreender o júri do Prémio Pessoa e recusar o galardão, em 1994.