A história real da misteriosa quitandeira [vendedora ambulante] que surgiu para se tornar símbolo da liberdade serviu de inspiração para o novo projeto de Luca Argel. "Sabina" é apresentado em dois concertos em Lisboa e no Porto. Lançado a 22 de fevereiro, o seu quarto álbum de originais pretende "dar ouvidos" à história desta heroína anónima do Rio de Janeiro.
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De acordo com Luca Argel, Sabina viveu "durante um período muito conturbado da história do Brasil". Na década de 1880, o país passava por um período de grandes mudanças: viviam-se os últimos dias da Monarquia, a turbulenta transição para a República e a abolição da escravatura. Em entrevista ao JN, Luca diz achar que, por Sabina ser vendedora de rua, se encontrava "numa posição um pouco privilegiada para testemunhar essas transformações que estavam acontecendo na sociedade."
O disco segue a história que imortalizou a figura da quitandeira como uma representante da luta contra as injustiças sociais. A vendedora de rua viu-se no meio da disputa entre monarcas e republicanos sendo que a única coisa que fazia era vender laranjas. Quando a polícia a expulsou do sítio onde costumava vender por causa do incidente, as laranjas de Sabina tornaram-se símbolo da revolta popular.
De acordo com Luca, a parte bonita da história foi a "grande manifestação de rua, uma manifestação espontânea em que conseguiram juntar muita gente para fazer um protesto contra a polícia e afinal conseguiram com que ela tivesse autorização de voltar para o lugar onde trabalhava".
A união popular para que Sabina pudesse recuperar aquilo que era dela por direito, tornou-a num símbolo de união e soberania popular, mas que, por ser uma mulher negra, viu a sua história, não só a ser recontada por outros, como a ser esquecida da memória coletiva carioca. O próprio artista, que agora dedica a esta mítica personagem um trabalho, confessa ter-se cruzado com a sua história por acaso.
"A ideia surgiu a partir das pesquisas que eu venho fazendo há alguns anos que acabaram resultando no "Samba de Guerrilha". Durante essas pesquisas eu descobri a história da Sabina, e achei que tinha um potencial muito grande para virar um projeto próprio. Não é uma história nada conhecida. Não é esquecida porque existem registos, existem jornais que dá para ir pesquisar e encontrar os relatos da época, mas não é uma história que entrou para uma mitologia popular no Brasil. "
Para além de reavivar a memória de um acontecimento que cruza a barreira entre a lenda e o facto, com o disco "Sabina", Luca pretende fazer o ouvinte refletir sobre como questões que eram problemas há mais de um século, continuam a sê-lo agora.
"O objetivo de contar essa história é criar um contexto de reflexão sobre vários problemas principalmente do racismo, porque a história é uma espécie de metáfora de muitos problemas que ainda existem hoje, apesar de ter acontecido há mais de 100 anos. Acho que ela tem essa capacidade de fazer com que a gente reflita sobre a origem de problemas sociais do presente, que a gente consiga, enxergando como esse problema existia no passado, fazer a ponte com o dia de hoje e talvez perceber o que nós fizemos errado de lá para cá."
Este projeto combina as sonoridades afro-brasileiras eletrificadas, que cruzam o limiar do rock, com o funk e o samba, que Luca Argel e a sua banda carregam na sua bagagem musical desde "Samba de Guerrilha". Para além da sonoridade, outro ponto de destaque no trabalho é que as canções são intercaladas com fragmentos da história da quitandeira, que se vão completando com a audição.
Por este ser um trabalho com uma sonoridade mais enérgica que os restantes que já produziu, Luca acredita que os concertos terão um ambiente "muito intenso e muito animado, muito dançante, muito mais do que qualquer outro que eu já fiz e meio hipnótico... até acho que as músicas estão envolventes de uma forma diferente, de uma forma mais visceral e mais corporal, pelo menos é o que eu tenho sentido nos ensaios."
Luca Argel apresentou "Sabina" no passado dia 23 em Lisboa, no espaço B.Leza. Este domingo, toca na sala Novo Ático do Coliseu do Porto, às 18 horas. Os bilhetes têm um preço unitário de 10 euros.