Mítica figura da dança pós-moderna, Lucinda Childs está no Porto para três dias de espetáculos: sexta e sábado no Teatro Rivoli e domingo no Museu de Serralves. Em entrevista ao JN, revisita o seu majestoso percurso - e as colisões que o compõem.
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"Dama da dança pós-moderna”, Lucinda Childs, a três meses de cumprir 85 anos, recebe-nos no Teatro Rivoli, no Porto, onde vai dançar esta sexta-feira, e sábado, às 19.30 horas, “Four new works”. No domingo ruma ao Museu de Serralves e apresenta “Early works”, às 14.30 e às 17.30 horas. O feito é impressionante? “O Merce Cunningham já o fez. Graças a Isadora Duncan, hoje somos reconhecidas como artistas e não como animadoras. As batalhas foram travadas, mas o reconhecimento ainda não é total”, diz a artista norte-americana ao JN.
Ao longo das últimas cinco décadas, Lucinda Childs construiu um repertório único, combinando precisão matemática, repetições hipnóticas e uma relação singular com a música. “A música é sempre a grande arquiteta das minhas criações”, explica. “Depois decido como a quero pintar, fugir dela, criar um diálogo ou ilustrá-la. Mas é sempre a música que orienta tudo”, revela.
Philip Glass e o silêncio
O programa de “Four new works” arranca com “Actus”, um dueto ao som de “Actus tragicus (BWV 106)”, de Johann Sebastian Bach. Prossegue com “Geranium ‘64” (2024), “onde revisito o meu solo com 60 anos, que inclui excertos de uma transmissão de rádio de um jogo da NFL [liga de futebol dos EUA], de 1964”. E contém ainda duas coreografias corais: “Timeline”, com música de Hildur Guonadóttir, e “Distant figure”, composição sonora de Philip Glass, colaborador repetente.
Repetentes são também os intérpretes: “Não queria trabalhar com bailarinos novos, queria os que já dançaram os meus trabalhos”, conta Lucinda Childs.
Emoções intervaladas
Em “Early works”, a ser apresentado em Serralves, o foco “está no movimento em si. Nos anos 1960 e 1970, não trabalhávamos necessariamente no teatro, mas em espaços alternativos. Trabalhámos em silêncio, inspirados pela técnica de Cunningham, onde contamos internamente intervalos de dois segundos, criando uma pulsação comum e uma concentração partilhada no silêncio. Quando tens isso depois sabes como os bailarinos se vão organizar no espaço”, diz.
A esta camada acresce a individualidade. “Cada bailarino é uma pessoa com emoções diferentes. Isso é quem tu és. Quero que seja completamente natural, não gosto de a burilar”.
Uma coleção de colisões
Nascida em Nova Iorque em 1940, Lucinda Childs sempre teve uma afeição pelo ballet e pela dança moderna, mas “os meus pais eram rígidos comigo, durante o tempo escolar não queriam que fosse às aulas de dança todos os dias, porque tinha trabalhos. Mas em Nova Iorque havia formação muito boa”, relembra.
Já como universitária, colidiu com Merce Cunningham, referência primordial da dança. “Ele veio dar uma aula à minha universidade e, quando o vi, percebi logo: ‘Isto é o que quero fazer’. Tive de ir com ele. Havia uma atmosfera maravilhosa na sua companhia, artistas como John Cage ou Robert Rauschenberg”.
Nos anos 1960, é convidada para colaborar com a Judson Dance Theater, coletivo revolucionário das artes performativas. “Este foi um grupo maravilhoso, formado por Yvonne Rainer e Steve Paxton. Convidaram-me a apresentar um solo e foi o ambiente ideal para uma jovem coreógrafa experimentar e crescer”, recorda.
E acrescenta-lhe a importância da comunidade. ”Não éramos só bailarinos e coreógrafos; havia imensos artistas visuais presentes, Robert Rauschenberg estava lá, Robert Mars também. Os encontros semanais que nós tínhamos eram abertos, qualquer pessoa podia vir e partilhar as suas ideias, os seus trabalhos e entrar no diálogo”, diz Lucinda Childs.
Na sua coleção de epifanias, a de 1976, com a participação na ópera experimental “Einstein on the beach”, de Philip Glass, o encenador e coreógrafo Robert Wilson tem um lugar especial. “O Robert convidou-me para o projeto e eu disse logo que sim, sem saber exatamente do que se tratava”, confessa. A obra tornou-se um capítulo basilar da história da ópera e da dança contemporânea.