Da perenidade da presença do escritor nessa ilusão de eterno que são as posteriores gerações, por muitas que se contem, ninguém poderá falar à partida. Tudo acaba, incluindo a memória em que se prolonga a vida, mas restarão poucas dúvidas de que José Saramago, pela arte e não pelas honrarias que justamente recebeu, perdurará entre os maiores da língua portuguesa.
Um clássico, portanto. Afirma-o Arnaldo Saraiva, professor jubilado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, mas sem as certezas da futurologia. "Um autor clássico é o que não envelhece", diz, admitindo que Saramago, pela "força simbólica" e pela qualidade da escrita, deverá escapar à regra que pesa sobre tantos escritores ("tendem a cair no esquecimento, até que uma efeméride os recupere, ou não"). Será o Nobel português enquadrável, portanto, na definição de clássicos feita por Italo Calvino: "Os que nunca acabamos de ler".
Disso não duvida, por um instante, o escritor Baptista- -Bastos, amigo próximo, que põe Saramago no patamar onde encontramos os maiores prosadores portugueses: "Quando se fala dos grandes, penso que o Saramago é o único que vai ficar na dimensão de um Eça de Queiroz ou de um Camilo Castelo Branco".
Com a fresca notícia da morte do escritor, sem lugar a contestação o mais reconhecido autor português contemporâneo, o tempo é propício aos tradicionais encómios e lugares-comuns. Mas também para se compreender, chovendo os elogios e os votos de pesar dos quatro cantos do mundo, a dimensão universal do escritor português, que transcenderá a circunstância que foi o Prémio Nobel de Literatura de 1998. "Foi graças ao seu estilo e ao seu poder de efabulação que José Saramago conquistou leitores em todo o Mundo", nota Arnaldo Saraiva, vincando a circunstância de haver muitos autores premiados "que não são lidos nem interessam aos leitores contemporâneos".
"A obra de José Saramago é tão vasta e tão variada que, não tendo a certeza de que venha a tornar-se um clássico, tenho de o classificar já como um clássico moderno", diz José António Gomes, docente e escritor (assina, também, com o pseudónimo João Pedro Mésseder) que lança outras pistas a respeito da perenidade da obra de Saramago, através dos meios académicos. "A obra dele constitui matéria inesgotável para estudos e reflexões", diz, salientando a forma como, nos textos do escritor, há uma original forma de a filosofia cruzar a ideologia, que "ainda não está suficientemente estudada", além de detalhes como aforismos, provérbios inventados pelo escritor, diálogos de grande riqueza filosófica entre personagens... "Não me surpreende que, em breve, haja uma antologia de provérbios criados por José Saramago, como foi feito, por exemplo, com frases de Oscar Wilde".
Outra matéria de estudo, que ajudará a manter a obra de José Saramago nos currículos escolares, é "esse aspecto singular de transformar a prosa numa espécie de narração oral, em que são incorporados diferentes registos, mas como se tudo saísse da grande voz do narrador". Algo que, nota José António Gomes, resulta numa "escrita sobre a qual se construíram ideias falsas" (a ausência de pontuação é uma falácia que ainda convence os que não tentam ler Saramago), quando qualquer "leitor atento", ao cabo de dez páginas, já está perfeitamente ambientado com o estilo e com o ritmo, percebendo, então, que "a prosa de José Saramago não é das mais difíceis da escrita portuguesa contemporânea".
Comovido pela perda de um amigo chegado, o presidente da Associação Portuguesa de Escritores, José Manuel Mendes, tem total certeza de que Saramago perdurará entre os maiores da nossa literatura. Vendo na obra de José Saramago "um património luminoso da cultura", dá-lhe a "dimensão que na história literária foi conferida a raros autores", mantendo-se intactas, nos escritos, as características de um homem que foi "uma referência de dignidade, de inconformismo e apelo transformacional que tocou profundamente os seus leitores das sete partidas".
"Os livros dele estão cheios de ideias e de interpelações à sociedade portuguesa", sublinha Baptista-Bastos, para quem o carácter único e inimitável de José Saramago é facilmente sintetizável: "Antes do Saramago, nada houve de semelhante. Depois dele, não há discípulos, poderemos apenas encontrar maus continuadores".
Mas o que há de diferente no trabalho de José Saramago, para lá do óbvio? Diz Arnaldo Saraiva que o autor "tem um sentido de modernidade, que conciliava com algum sentido de tradição barroca", junta-lhe aspectos de sedução como um tipo de leitura mágica latino-americana, soma-lhe a identidade de intelectual empenhado, ao estilo do início do século XX, ou de escritor "engagé", como nas décadas de 1940 e 1950... um somatório único, enfim, que, para o académico, faz com que entre os romances de Saramago haja verdadeiras obras-primas.
Um autor muito variado, reforça José António Gomes. As alegorias que constituem os romances mais recentes, as obras de enquadramento histórico, os trabalhos de carácter mais poético. Textos que continuarão a seduzir todos os públicos, dos que procuram uma bela história de amor ("História do cerco de Lisboa") aos leitores mais pequenos ("A maior flor do mundo"). Além da Fundação José Saramago, cujo trabalho prosseguirá, impedindo o que parece ser a tal impossibilidade do esquecimento.
