Já estreou o novo filme do cineasta português, “O teu rosto será o útimo”. É uma espécie de filme-súmula da obra de Luís Filipe Rocha, em que aborda a infância, a relação entre pais e filhos, a liberdade. "A História está sempre a interferir na nossa vida, mesmo quando andamos na nossa vidinha", diz ao JN.
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Na mesma altura em que foi lançado o DVD de um dos seus primeiros filmes, “Cerromaior”, Luís Filipe Rocha lança finalmente em sala o seu último trabalho, “O Teu Rosto Será o Último”. Baseado no premiado romance de João Ricardo Pedro, o filme centra-se numa família cuja história atravessa o Portugal da ditadura, da guerra colonial e da Revolução de Abril e tem como peça motora um jovem com um dom para a música que tem dificuldade em gerir. Vicente Wallenstein é o jovem que se vê no cartaz do filme, secundado por um sólido grupo de atores, como sempre na obra do cineasta, como Rita Durão, Nuno Nunes, Adriano Luz, Teresa Madruga e Pompeu José.
Vendo o filme, percebe-se que descobriu no livro temas que se cruzam com a sua obra, a infância, a relação entre pais e filhos, a liberdade deste país.
Sim, é talvez a questão que me empolgou mais desde o dia em que li o livro. Muitos dos temas que eu tenho tratado ao longo de 50 anos em 13 filmes, têm a ver com a relação, para ser simples, entre a História, com “H” grande e o indivíduo, com “i” pequenino. E a noção de que a História está sempre a interferir na nossa vida, mesmo quando andamos a tratar da nossa vidinha. A nossa vida está sempre embebida na história da nossa família, do nosso país, do mundo, no tempo que nos toca viver.
E há ainda a questão da criação artística…
A relação entre a arte e a vida, que já tinha aflorado, embora vagamente, em “A passagem da noite”. O trabalho artístico ou outro trabalho absolutamente absorvente, que solicita do indivíduo uma dádiva permanente do seu ser, e a própria vida.
Desde “A fuga” que a ditadura e a luta pela liberdade faz parte do seu imaginário.
Acho que há muita coisa que está por ser dita, por ser pensada ou por ser coletivamente debatida, que é realmente a ditadura. Não apenas do lado dos vencidos mas também do lado dos vencedores. É a guerra colonial, em todos os seus aspetos, heróicos, de grande dedicação, de grande sofrimento, e depois o lado negro da guerra colonial. E finalmente o pós 25 de Abril. E a maneira como é que no tempo a gente a pouco e pouco vai metendo umas coisas debaixo do tapete, não falamos nelas, e de repente elas começam a germinar.
Um aspeto curioso do filme é a abordagem da ruralidade. Quer explicar?
Já me falaram disso. A relação, em Portugal, e noutros países mediterrânicos também, entre a cidade e o campo. Eu tenho isso dentro de mim, alfacinha puro, nascido e vivido em Lisboa, mas sempre com uma relação, do meu avô materno e do meu bisavô que eu conheci, com uma pequena aldeia sem água nem luz onde ia praticamente até à adolescência passar férias. Mas essa ruralidade já estava presente noutros filmes meus. O primeiro que me vem à cabeça é o “A Outra Margem”
O trabalho com os atores é o que lhe dá mais prazer no ato de filmar?
Sempre foi. O processo de fabricação de um filme é uma coisa muito complexa. São várias peças que têm de se encaixar. Várias coisas que têm de convergir e que têm de harmonicamente se entender. Sempre que eu tenho alguma dúvida sobre encaixes destas peças todas, as minhas âncoras são os atores. Eu quero que os atores dos meus filmes se sintam sempre confortáveis, livres e protegidos. Em todos os momentos em que têm de se expor perante a câmara. E isso, para mim, é absolutamente decisivo.
Sempre foi assim, mesmo nos primeiros filmes?
Eu revi esta semana o “Cerromaior”, que pertence a uma época em que era absolutamente obcecado com o som direto, com o realismo das pessoas, apanhava as pessoas na rua. Eu tive sempre uma certa habilidade para tentar encontrar o ser humano e usá-lo exatamente no papel que lhe atribuo. Isto acontecia, tendo eu como obsessão o som direto e um certo realismo, um certo verismo,
Quando é que se dá essa mudança de paradigma em relação aos atores?
Sobretudo quanto paro entre os “Sinais de vida” e faço o meu segundo exílio na China, e depois faço o “Amor e dedinhos de pé”. Esse período, esse hiato, que foram uns sete anos, fez-me refletir, refletir, refletir muito, e de facto, no “Amor e dedinhos de pé” passo a ter uma postura em relação aos atores completamente diferente, passo a trabalhar com atores profissionais, sempre. Mas o casting não é só escolher o melhor ator para aquela personagem que imaginaste. É também ver a química entre as personagens que se vão cruzar. No “Rosto” é muito evidente a química entre a Rita Durão e o Nuno Nunes. Eu procuro já não o ator, no seu sentido meramente profissional e técnico, procuro encontrar o ser, o humano dele, para o ser imaginário que é a personagem.
"A liberdade não é canja", diz-se no filme. Este filme pode ser considerado não como uma arma, mas como um instrumento de defesa dessa liberdade que se tem de defender no dia a dia?
Pode, não pensei nisso, não foi uma questão que conscientemente me aparecesse. Está a aparecer-me agora. Eu já recebi duas ou três mensagens, de jovens que conheço desde que nasceram, gente de vinte e tal anos, e as mensagens são muito bonitas, exatamente pelo que está a dizer. É gente que já está a viver num mundo, não apenas diferente do que eu vivi, mas sobretudo muito diferente daquilo que o filme mostra. Uma amiga minha disse-me que os dois anos que esperei para estrear o filme não foram por acaso, foram para comemorar os 50 anos do 25 de Abril. Eu só queria que o filme fosse à sua vida, tenho outras coisas para fazer. Nesse sentido, este filme se calhar aparece na altura certa.
É o destino dos artistas, seja em que área for, serem seres solitários?
O meu primeiro impulso é dizer que sim. Mas depois começo a pensar na história da arte, em geral. O Duarte fala do Bach, que teve 18 filhos. Há artistas que conseguiram ser grandes, indiscutíveis, e não serem tão solitários. Nos momentos mais profundos, mais graves, mais delicados, de cada um de nós, estamos sozinhos. A criação artística é um processo também de choque, como o professor diz ao Duarte, a música não é uma garantia de felicidade. Nas artes, uma grande parte da matéria-prima com que se trabalha é o Mal, o Bem, a dor.
É que no filme o Duarte tem um dom, mas acaba por renegá-lo…
É uma coisa que me fascinou quando li o livro. Tudo que me lembro de ter visto e lido sobre o martírio, a dificuldade, os sacrifícios, a luta do artista, tem a ver com a luta para se impor. O que nunca tinha visto é um artista que recebe um dom e começa a questioná-lo. E começa depois a combatê-lo. Até o suspender. Mas uma das coisas que quis deixar claro no final do filme é que ele pode, provavelmente, retomar a música.
Há uma equivalência entre o ato de criar música e de criar um filme?
O artista é tendencialmente uma pessoa solitária, o ato criativo é uma coisa que carece muito de solidão. Uma das coisas que me fascinou no cinema, coisa que nunca tinha imaginado fazer até o descobrir, é que há uma enorme solidão interior. Porque as decisões são sempre tomadas por mim, e a maior parte delas não têm regresso. Mas ao mesmo tempo o cinema tem a parte coletiva, que é imensamente fascinante. Os meus filmes ficam sempre melhores do que eu os sonhei, por causa dos atores e dos técnicos. E isso é a parte mais entusiasmante, é mesmo vital. O cinema tem isso, permite-nos fugir da solidão criativa.
A relação entre pai e filhos é outro tema claro do seu universo que retoma aqui.
Um psicanalista que não via há quatro anos mandou-me uma mensagem. Eu não sabia o termo, e ele está lá, é a transferência intergeracional do trauma. É uma coisa que aprendi ao ser pai, e ainda bem que eu fui pai tardio, ser pai aos 45 anos tem a vantagem que tu começas a perceber algumas coisas. Eu acho que a gente só vai começar a perceber coisas a partir de 50. Percebi bem aquilo que eu chamo o caroço que cada ser humano trás, dentro dele, que é imutável em princípio durante a vida inteira. E a maneira como a vida, as pessoas, as circunstâncias, a história, o tempo, vai conflituando com isso.
O filme também é uma declaração de amor à música. Qual a importância da música na sua vida?
A música foi sempre uma coisa que me interessou. Eu acho que o meu amor à música é um amor como cineasta. Eu sempre tive uma relação muito particular, às vezes um bocadinho fora da caixa, com a música dos meus filmes. Sempre que pude, tratei a música como uma personagem. Não está lá para fazer a cama, para servir de paraquedas, para criar climas. Está lá para ser uma personagem que participa ativamente das relações entre personagens. Tem a sua voz, tem a sua autonomia, tem a sua afirmação,
Na mesma semana, vê editar em DVD o “Cerromaior” e “O teu rosto será o útimo” chegar às salas. Está orgulhoso?
Foi uma semana muito de montanha-russa, do ponto de vista emocional. Vivo a 50 quilómetros de Lisboa, numa aldeia, numa rua sem saída, a minha casa é a última, só ouço passarinhos. Sou muito bicho-de-mato. Tenho de o assumir. E, de repente, a sala da Cinemateca, a apresentação do DVD na Cinemateca, aquela sala do São Jorge, foi emocionalmente muito perturbante e muito gratificante E também me permitiu ligar os dois filmes. Isso é uma coisa muito bonita.
Tem alguma memória especial das primeiras projeções do “Cerromaior”?
Tenho a memória de uma projeção num barracão imenso, numa seara. Teve de ser dividida em duas, porque as pessoas não cabiam todas. Foram para aí quatro mil pessoas numa tarde. Isso é uma coisa que não se esquece. Se não é só por isso que eu faço filmes, também é por isso que faço filmes. Não é o público. Não são sequer os espectadores e o número dos espectadores. Não tem nada a ver com isso. É a comunicação humana que se pode estabelecer, entre mim, através do filme, e os seres humanos concretos. São dez, são dez milhões, quantos mais melhor. Mas que a comunicação seja profunda, ativa, sensível.
Disse que precisava de "ir fazer outras coisas". Que outras coisas são essas?
Não se pode saber muito. Eu fui brincando ao longo da rodagem do filme com as pessoas que estavam perto de mim, dizendo que estava farto e que o melhor era mudar o título do filme de “O teu rosto será o útimo” para “Este filme será o útimo”. As pessoas riam, eu também ria, mas é uma piada com uma forte probabilidade de vir a acontecer. Tenho 76 anos, sinto-me muito bem, mas o cinema português mudou muito.
Mas não vai ser o último, seguramente…
Se vier a ser, não será por minha vontade. Mas também quero dizer, com total sinceridade, que se este filme for o último, eu até fico um bocadinho contente. Ficarei bem, não ficarei vencido nem derrotado nem frustrado. Reconheço que as coisas mudaram tanto nos últimos anos.
Mas já há algum projeto na calha em concreto?
Sim, tenho um projeto escrito mas tenho vontade, agora que este filme finalmente começa a sair de mim, de passar um verão tranquilo, de leitura, vou fazer uma viagem à Namíbia, depois fazer um bocadinho de praia e de campo que eu gosto. O filmezinho que eu tenho escrito, chamo-lhe filmezinho porque é um filmezinho, foi uma espécie de terapia para esperar dois anos pela estreia deste. É a adaptação de um conto de um escritor espanhol de que sou muito amigo. Vamos ver, por mim continuo.