Luís Filipe Rocha filma nova obra em Oliveira do Conde.
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Ação! O padre da pequena igreja, aliás o ator António Simão, benze um caixão. Um grupo de homens pega no féretro e um jovem, interpretado por Vicente Wallenstein, pede-lhes que também o deixem carregar os restos mortais da avó. Os homens recusam, porque Duarte só aparece por lá durante as férias de verão e foram eles que a falecida criou. O cortejo fúnebre abandona lentamente a igreja, seguido pelos habitantes da aldeia.
"Corta!", grita Luís Filipe Rocha. Estamos na igreja de Oliveira do Conde, um município de três mil habitantes no concelho de Carregal do Sal, Viseu, que albergou os últimos dias de rodagem de "O teu rosto será o último", adaptação do romance homónimo de João Ricardo Pedro.
Após a rodagem da cena, o realizador explicou o que tínhamos acabado de assistir. "É o funeral da avó do protagonista, a última pessoa que na família morre. Com este funeral, abre-se a sequência final do filme. A função principal desta cena é encerrar o percurso narrativo do crescimento de uma criança, que vai dos sete aos 22 anos".
O filme, produzido pela Ukbar Filmes e com a participação de Rita Durão, Teresa Madruga e Adriano Luz, é um drama familiar que atravessa a história recente de Portugal, a partir do conflito de um jovem pianista com um dom invulgar que o destino lhe concedeu. O que interessou o realizador no livro "foi em primeiro lugar o título e uma declaração que o João Ricardo Pedro fez naquela altura. Como ainda não tinha saído quando teve o prémio [Leya, em 2011], cada vez que ia a uma livraria perguntava pelo livro".
Para Luís Filipe Rocha, "o livro tem uma escrita poderosíssima e invulgar, não apenas na geração dele de escritores, mas na literatura portuguesa em geral. É uma escrita prodigiosamente narrativa, que conta, não faz tricô. Depois, fascinou-me a forma como num pequeno núcleo familiar se vai acompanhando a história de Portugal".
A forma como o livro aborda o dom pianístico de Duarte é para o realizador o coração da obra. "Normalmente, a luta do artista é vista pelo lado do sacrifício, dos obstáculos que tem de ultrapassar para se consagrar como génio. Aqui, é um miúdo que nasce com um dom e cuja luta vai ser contrariar esse dom. Por razões que depois serão mais visíveis no filme".
Autor de uma vasta obra, onde se encontram títulos como "Cerromaior" e "A passagem da noite", Luís Filipe Rocha confessa: "Foi o primeiro filme que transportei comigo durante dez anos. Nunca me tinha acontecido e não vai voltar a acontecer". E assume a ligação com o trabalho anterior: "A solidão humana é uma temática recorrente. É o centro da nossa vida na Terra. E depois a relação com a história de Portugal, a literatura, o crescimento, a relação entre a cidade e o campo".
Segue-se a pós-produção do filme, cuja estreia, ainda não marcada, deverá acontecer em 2023.
Livro
O pressentimento de João Ricardo Pedro
Engenheiro eletrotécnico, João Ricardo Pedro viu-se desempregado em 2009 e virou-se para a escrita. O seu primeiro livro, "O teu rosto será o último", venceu o Prémio Leya em 2011. Acompanhando também um dia de rodagem, falou das emoções que sentiu. "Há a alegria de ver materializado qualquer coisa que saiu da minha cabeça. Mas também há uma certa violência. Quando estava ao lado da anotadora começou a ser um bocado penoso. Não seria capaz de assistir a toda a rodagem". O autor explica o que o motivou a escrever. "Se calhar há coisas que já habitam em nós e só damos por elas num determinado momento da vida. A minha relação com a literatura foi sempre muito intensa enquanto leitor, mas houve um momento da minha vida em que pressenti uma necessidade criativa". Do que João Ricardo Pedro não duvida é que Luís Filipe Rocha é a pessoa certa para adaptar o trabalho. "É quem melhor compreendeu o livro. Ver passar dez anos, todo o esforço pessoal dele e ver a coisa acontecer dá-me uma grande alegria".