Luís Filipe Sarmento é o protagonista da rubrica do "Jornal de Notícias" Autor do Mês de janeiro. Nesta longa entrevista - de que publicamos agora a primeira parte -, fala abertamente sobre a sua escrita e o modo como ela continua a ser um instrumento importante para a sua visão do mundo.
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São 66 anos de vida, 47 dos quais enquanto autor publicado, atravessados por uma exaltação e inquietação permanentes enquanto condições necessárias para a existência.
.Com um rico e diversificado percurso profissional - enquanto jornalista, realizador, professor e tradutor -, Luís Filipe Sarmento é também autor de uma longuíssima obra que, embora se funde na poesia, tem conhecido também passagens pelo romance ou ensaio.
Distinguido no ano passado com o Prémio Internacional César Vallejo, publicou recentemente o livro "Beat", um diálogo literário intenso com autores essenciais daquele movimento literário, como Jack Kerouac, Allen Ginsberg ou Gregory Corso.
Quase 50 anos volvidos sobre a sua estreia literária, com "A Idade do Fogo", ainda se sente um "novíssimo", como Graça Capinha escreveu recentemente sobre a sua poesia?
Até ao dia em que a morte me lance no mundo inexorável do esquecimento tentarei ser sempre «novíssimo» no sentido de ser contemporâneo. Nunca serei moderno ou pós-moderno ou hipermoderno cujos limites estéticos me asfixiariam e me obrigariam a ser um outro distante, muito distante, do que sou. Creio que ser contemporâneo não é compatível com essa ideia de ser moderno. Novíssimo no sentido da experiência inovadora e sem fim que a arte da escrita me instiga e onde não pode haver balizas ou fronteiras. Não tenho uma escrita engravatada nem nunca serei mainstream. Para muitos é uma maldição, para mim é um exercício de liberdade. E este é o pilar fundamental da minha escrita.
O que os anos trouxeram à sua escrita?
Uma exposição constante ao perigo, ou seja, um ato constante de me entregar à experiência da liberdade depois dos anos negros da ditadura. A minha escrita surge com o medo do obscurantismo, ainda muito jovem, e liberta-se com o acesso a tudo o que me estava proibido com a revolução de Abril. E trouxe-me gente que me constituiu e que edificou o homem que sou e o escritor que continuarei a ser sem concessões ou paliativos para palcos efémeros. E trouxe-me também exaltação e inquietação como condição necessária para me entender no seio de uma revolução permanente não no sentido da data marxista-leninista, mas no sentido da exploração que a contemporaneidade exige de mim.
E à visão do mundo?
A visão do mundo resulta sempre de uma observação minuciosa de tudo o que nos rodeia, mas também com a liberdade de acesso ao conhecimento. Só pensamos o mundo a partir de ferramentas tão importantes e tão maltratadas como o livro, a informação e a leitura. E o que se observa é o conflito permanente entre o medo e a esperança, como já o referiu Boaventura de Sousa Santos. O exercício da escrita, através da profissão de repórter que exerci durante muitos anos, obrigou-me a pensar o detalhe do acontecimento no universo complexo dos comportamentos. Nessa prática, a da escrita jornalística e a da escrita literária - ainda que o jornalismo já tivesse sido e deveria continuar a ser uma disciplina superior da literatura - como testemunha e, consequentemente, como mediador entre o evento e o leitor me oferecesse, entre obscuridades chocantes, com clareza de que a época histórica que me tem sido dado viver não está ainda muito distante da barbárie. E isso torna-se tanto mais evidente quanto a construção do texto me obriga a refletir na sua sequência. Na pergunta que coloca poderia gerar-se um paradoxo: o que me trouxeram os anos de escrita à minha visão do mundo? A exigência de pensá-lo para escrever e perante a fábrica humana de catástrofes poder-me-ia levar à desistência da escrita. Só a resistência e o encanto enigmático da palavra como baluarte da liberdade é que me «obrigam» a estar aqui nesta conversa consigo.
Nos seus livros mais recentes, sobretudo "Beat" e "Rouge", detetamos uma certa vontade de reposicionamento ou, se preferirmos, uma tentativa de evitar a cristalização ou repetição de fórmulas. Como se conjuga essa vontade de fazer diferente com a manutenção da identidade autoral?
O que dá ao escritor a sua identidade é o estilo, a sua linguagem que o identifica. Ora, como o Sérgio diz, a vontade de reposicionamento e a tentativa de evitar a cristalização ou a repetição de fórmulas é o que caracteriza a minha linguagem ou o que tento fazer para que essa contínua busca da diferença e do novo seja uma característica da minha literatura. E este posicionamento, que me alimenta diariamente, dificulta-me o acesso a certos meios, donde o convite que me fez para esta conversa constitui para mim uma surpresa. O que não deixa de ser estimulante.
O que é suscetível de despertá-lo hoje para a escrita de um poema?
A face oculta do prisma do evento que me emociona, que me sensibiliza e que me comociona. E, neste sentido, se a linguagem acompanhar não temo a repetição de fórmulas porque o incidente em si que me provoca só me provoca ao meu olhar. A sensação produz uma alteração da consciência, alteração esta que é íntima e que só a mim me pertence; neste sentido, a minha linguagem, que é assumidamente uma fuga ao padrão, faz o resto, ou seja, trabalha no que poderá ser inovador o excesso que as emoções provocam. É o que a liberdade da arte exige de mim. Continuo a responder também à pergunta anterior.
O ideal da revolução está muito presente não só na sua vida como na sua obra. Nunca cedeu ao desencanto, mesmo que passageiro, ao constatar que muitos desses ideais acabam por ser traídos?
Esses ideais só são traídos por quem os trai, seja por conveniência episódica - o que identifica desde logo o caráter do traidor - seja por uma desestruturação de si, o que o leva a trair. O desencanto acabaria por me assassinar enquanto escritor, mas sobretudo enquanto homem que acredita nos valores de transformação e até de transmutação das sociedades. Luto por tudo em que acredito e a minha literatura reflete isso mesmo. E o combate de hoje é essencialmente defender a minha liberdade enquanto criador de ambientes onde só a liberdade é possível.
A escrita e a poesia são apenas duas das muitas facetas do seu percurso, a par do jornalismo, edição, tradução, realização ou ensino. Quão importantes são para o seu equilíbrio?
Cada uma delas teve o seu tempo no equilíbrio do meu ser. Mas se pensarmos bem todas elas contribuíram para o meu desequilíbrio e só na inquietação que ele provoca é que consigo manter-me. São todas estas facetas do meu equilíbrio instável que, no desequilíbrio momentâneo, me ajudam a buscar o novo e só nele a instabilidade da experiência, ou seja, da exposição ao perigo, me equilibra como um funâmbulo que atravessa um abismo. É uma postura arriscada se me preocupar com o que o outro poderá pensar, mas não deixa de ser o conforto da minha existência.
O que pode um poema contra as ignomínias do Mundo?
A poesia sempre ajudou a transformar as sociedades e continuará com essa missão que, não sendo incumbente, é-lhe natural porque ela só existe se existir a liberdade de criá-la. Ao ser um esteio da liberdade manifestar-se-á sempre contra as ignomínias do mundo.
Como é que uma poesia que sempre recusou as compartimentações, vê os olhares alheios - sobretudo de críticos e académicos - sobre o que escreve?
Vejo-o desde logo como algo que não me pertence. É um exercício de opinião sobre o que faço e que nem sempre é coincidente com o que penso sobre o que faço. Cada uma dessas leituras é uma viagem única do seu autor que escolhe trilhos segundo os seus padrões para perscrutar no texto que critica identificações ou oposições, da qual eu não sou responsável. Mas nem todos os olhares alheios sobre o que escrevo caem na tentação de compartimentar a minha literatura; por vezes navegam na surpresa e quando exibem essa honestidade, o que não quer dizer que haja uma identificação imediata, sinto que valeu a pena chegar a esse porto. Outra coisa é a partir do pressuposto analítico insultar o autor do objeto em análise. E isso é inaceitável.
Uma leitura é sempre uma interpretação. Acredita que, apesar desses esforços de aceder ao seu núcleo mais íntimo, um poema é, em larga medida, inapreensível ou, se preferirmos, inaprisionável?
Toda a leitura de um objeto artístico é uma interpretação. Quando se diz que um livro, depois de publicado, pertence ao leitor estamos a falar de uma meia verdade até certo ponto simpática. Na realidade, ele pertence ao seu autor, a interpretação é que pertence ao leitor. O facto de ser inaprisionável, como diz, é o que leva todas as ditaduras a estabelecer redes de censura e nas falsas democracias ao silenciamento do escritor, favorecendo, num e noutro caso, as vozes do regime.
Afirmou numa entrevista que, se os poetas lessem os outros poetas, a poesia seria o género mais lido de todos. Como explica esse desconhecimento interpares?
A resposta é breve: por despeito. E o despeito gera desconhecimento. E o desconhecimento favorece a ignorância.