Em “Pequeno teatro do Mundo”, que inaugura esta quinta-feira na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, em Serralves, no Porto, Luís Miguel Cintra não abre só a porta de um percurso lendário; convida-nos a entrar na terra íntima onde a arte se confunde com o quotidiano e as personagens nunca deixam, na verdade, de existir.
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Há casas que são palcos. E há vidas que nunca deixam de encenar, mesmo depois de a cortina se fechar.
"São Sebastião a olhar para o céu e um outro boneco que olha para a barriga são uma cena teatral, assim como um cão de louça enorme que está na sala de alguém para conversar com a pessoa”, conta Luís Miguel Cintra.
É uma das cenas teatrais que montou na sua casa em Lisboa, com milhares de estátuas e bustos, como Shakespeare ou Beethoven, “pessoas que os mais novos já não conhecem”, adquiridas para fintar a solidão e chegar a casa e encontrar sempre “caras conhecidas”. Isto foi antes de se mudar para o Candal, em Vila Nova de Gaia, onde consegue “ver o Porto”, para a sua “festa de fim de vida” — porque "depois da doença, e na idade em que estou, queria viver uma coisa nova e o Porto ainda tem algumas virtudes antigas", explica.
Encenador, ator, colecionador de gestos, de vozes, de silêncios — Cintra, de 76 anos, foi durante décadas o corpo e a alma do Teatro da Cornucópia, nome incontornável do teatro português e figura transversal no cinema nacional, com uma presença densa e singular em mais de 60 filmes, muitos deles de Manoel de Oliveira.
A relação entre os dois, marcada por uma confiança artística rara, está espelhada aqui, num percurso expositivo que é também um encontro de olhares: o do teatro e o do cinema, o da fé e o da dúvida, o do palco e do interior de uma casa.
“Eu entro num táxi aqui no Porto e as pessoas dizem: eu conheço a sua cara, o senhor não é da televisão? Não homem, por amor de Deus, eu fiz foi os filmes do Manoel de Oliveira”, conta Luís Miguel Cintra.
Oliveira, o homem que nunca se rendeu
A relação entre os dois artistas é repleta de memórias, como “o dia em que Manoel de Oliveira, já com mais de 100 anos, veio fazer-me uma visita guiada a Serralves, a uma exposição sua”. Ou o dia em que, chegados ao Festival de Veneza para uma estreia, depois de uma atribulada viagem, sem malas e roupas e “muito amarrotados e suados”, Oliveira, perante a inevitabilidade do azar, lhe disse: “Olhe, Luís, vamos assim e vamos bem, porque vamos com o que somos, somos nós”.
Sobre o mítico companheiro, além de ter sido a única pessoa que o convenceu a usar uma gravata na vida, “uma única vez”, conta que “nunca se vendeu ao mercado, ao assassino de pessoas”. Porque as pessoas vivem convencidas que “ter uma piscina, um automóvel, e ir de férias, se amealharem, é o que importa”. Mas, na verdade, estão todas iguais, e Cintra dá como exemplo as casas: "Eu vou à casa de pessoas novas e não há nada que as distinga, todas têm os mesmos móveis da Ikea”.
Depois do encerramento do seu teatro em 2016, o ator e encenador ficou só. Ou talvez não: as figuras que foi reunindo — esculturas religiosas, brinquedos que o pai lhe dava em Madrid, onde nasceu, figuras populares, presépios, cascatas — encheram-lhe a casa como um elenco fiel e silencioso. São elas agora o seu teatro — estático, privado, mas ainda profundamente vivo.
O apartamento onde viveu foi transformado numa instalação de memória, numa dramaturgia doméstica onde o passado não se apaga: reverbera.
“Vivo obcecado com a ideia da morte, porque gosto muito de viver. As coisas simples como a água do mar, o sol ou fazer amor com as pessoas de quem gostamos, há um momento para tudo isso terminar. A Igreja Católica explica isso tudo com a ideia de Céu e Inferno; eu voltei à religião católica mais tarde, mas não tenho medo de pecar”, confessa.
Filmes que fazem “chorar de alegria e espanto"
A exposição “Pequeno teatro do Mundo”, com curadoria de Luis Miguel Cintra e António Preto, é também isso: uma forma de mostrar a quem somos quando já não estamos em cena, mas ainda não saímos da personagem. Uma evocação, uma celebração, e uma espécie de despedida.
Como extensão natural da exposição, o programa de cinema que acompanha “Pequeno teatro do Mundo” é, ele próprio, um espelho da sensibilidade de Luis Miguel Cintra.
Ao longo de vários meses, o auditório da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, no Parque de Serralves, acolhe uma seleção pessoal e afetiva de filmes. São obras que, nas palavras do próprio, continuam a fazê-lo “chorar de alegria e espanto perante a obra de Deus”.
De Rossellini a Pasolini, de Chaplin a Truffaut, esta programação é mais do que uma homenagem ao cinema: é uma partilha íntima, quase confessional, sobre os filmes que moldaram o olhar de um ator e de um homem. Cada sessão é uma convocação à presença, ao silêncio, à escuta profunda — como no teatro. Como na vida.
“A vida dos espelhos” estreia domingo
A abrir o programa de cinema que acompanha a exposição, “A vida dos espelhos” (2025), filme de Regina Guimarães e Saguenail, é um gesto poético e político. Realizado por dois criadores fundamentais do cinema e da palavra em Portugal, o filme é uma meditação sobre identidade, memória e reflexos — íntimos, sociais, cinematográficos.
A escolha não é acidental: é uma obra que olha para dentro, como Luis Miguel Cintra sempre olhou para as personagens, para os textos, para o próprio teatro. Com 135 minutos de imagens que espelham um certo modo de existir — à margem, mas profundamente atento — “A vida dos espelhos” inaugura este ciclo como uma espécie de espelho do próprio Cintra: inquieto, lírico, radicalmente livre.
É um convite à contemplação, à escuta e à pausa, como se o cinema também fosse uma forma de estar em casa. O filme pode ser visto no domingo, às 17 horas.
Sobre os espectadores, diz que “atualmente são ordinários e vulgares em relação ao cinema. Tudo é avaliado pelo valor de mercado, o espectador é um comprador”. A mesma boçalidade que encontrou numa consultora cultural que lhe disse: “Sabe, Luís, a sua companhia não precisa de cenários, há umas máquinas agora onde pode desenhar os cenários e vai passando. Ao que eu respondi: isso é uma declaração de miséria mental, a senhora só percebe de intriga política”.
Até 4 de janeiro de 2026, em Serralves, o teatro continua. Dentro de uma sala, dentro de uma casa, dentro de um homem.