“Nem todas as árvores morrem de pé”: a estreia da cantora e compositora Luísa Sobral no romance é uma das agradáveis surpresas deste ano.
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Com “a perícia dos carteiristas do elétrico 28”, Luísa Sobral sempre foi hábil na capacidade de tornar suas histórias alheias. Sabíamo-lo através das suas canções, tecidas com a filigrana dos mais sensíveis, mas estender ao romance esse dom criativo é um feito que poderá surpreender até muitos dos seus seguidores habituais.
A partir de uma notícia solta de um jornal de Vila Real sobre um casal que decidiu terminar a vida em conjunto, a artista começou por transformar em canção o aparente drama. Mas, desejosa de ir mais além na missão de dar um rosto e uma vida (ainda que imaginária) aos protagonistas da notícia, aventurou-se pela primeira vez na escrita de um romance.
O resultado é “Nem todas as árvores morrem de pé” (edição D. Quixote), um delicado ensaio sobre as relações humanas que nos transporta para diferentes tempos e lugares (da década de 1930 até quase ao presente, numa viagem narrativa que se centra na Alemanha, mas se desdobra por Itália e Portugal), concretizando uma ambição literária pouco frequente num romance de estreia.
Os fios da narrativa estão ligados a duas mulheres: Emmi, nascida na Alemanha na altura da ascensão de Hitler ao poder, e na sua filha, M., cuja relação foi minada praticamente desde o início pelo caráter severo do pai.
Agente da Stasi, a infame Polícia secreta da antiga RDA, o homem vive em duas realidades paralelas, jurando nas cartas que entrega à mulher um amor que não tem correspondência no seu comportamento brutal e sádico do dia a dia.
Se a mãe se afundou numa depressão sem retorno, vivendo fechada no quarto, a filha procura uma liberdade que a vai fazer questionar a rigidez dos ditames em que cresceu.
Tempo e passado cruzam-se em permanência nestes dois relatos que exploram o impacto da construção do Muro de Berlim no quotidiano de milhões de pessoas, muitas das quais acabaram por ser separadas à força. A dureza e a opressão reinantes são atenuados por um registo narrativo e de escrita que nos mostra como os sentimentos podem derrubar até os muros aparentemente mais intransponíveis.