Dois refugiados palestinianos em Atenas tentam obter passaportes para continuar viagem para a Alemanha. É assim que começa o drama humano “A Uma Terra Desconhecida”, de Mahdi Fleifel, nascido no Dubai e fugido do Líbano com os pais, ainda criança. A viver na Dinamarca, assina a sua primeira longa-metragem de ficção.
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O filme estreou mundialmente em Cannes, passou há dias pelo Curtas Vila do Conde, que organizou uma mostra da obra do realizador e já está nos cinemas. Estivemos a conversar com o realizador.
Como é que o cinema pode ajudar a causa palestiniana? Houve muitos filmes que ajudaram a fazer cair o apartheid, embora agora a situação seja mais complicada.
Tenho uma grande objeção quando se diz que a causa da Palestina é complicada. Na verdade, não é. É um povo que vive numa terra que lhe foi roubada, à luz do dia. Com o mundo todo a ver. Estas pessoas que foram despojadas não tinham poder, não tinham riqueza e como resultado não tiveram direitos nenhuns. Não se podiam dirigir à esquadra mais próxima. É o que está a acontecer com a Palestina e com os palestinianos. É tão simples como isto. Não há nenhuma complexidade. Qualquer criança o compreenderia.
E o papel do cinema?
Os poderes instituídos têm tentado eliminar as histórias da Palestina. Escondê-las. Mas apesar de todo o poder e dinheiro posto para tentar suprimir a História, não se consegue suprimir o trauma, a memória coletiva. Apesar de haver pessoas que acham que valem mais do que outras, respiramos todos o mesmo ar. Quando se faz um filme sobre a Palestina, seja documentário ou ficção, estamos a ir contra esses poderes. Estamos a mostrar ao mundo as provas que eles querem esconder.
E a mostrar a cultura do povo palestiniano…
Estamos a dizer que somos um povo, existimos, temos sonhos, esperanças. Temos uma cultura, uma História. Não somos fantasmas inventados para apoiar a narrativa sionista. Sempre disse que fazer um filme é um pequeno milagre, mas fazer um filme palestiniano é alcançar o impossível. Ninguém queria que o meu filme visse a luz do dia. Um filme sobre palestinianos a falar árabe com o dialeto palestiniano, no exílio, num país europeu visto mais como um destino turístico? Ninguém queria que este filme se fizesse.
Mas conseguiu fazê-lo.
Consegui fazê-lo! Temos de nos aliar a pessoas que não aceitam um não como resposta. Eu vivo na Europa, de certa forma sou europeu, e foi difícil convencer países europeus a dar-nos dinheiro para fazer um filme que não é sobre eles. Diziam-me para fazer um filme na Dinamarca, ou em França. Mas é importante trazer cá para fora estas histórias, juntar-nos com pessoas que lutam contra a maré.
Como é que viveu a experiência com o público português?
Foi bom, fui muito bem recebido. As pessoas realmente apreciaram o filme e o resto da retrospetiva. Mas há muito humor na minha obra e senti que havia uma grande melancolia nos portugueses. Sobretudo quando comparo com a Grécia ou com o Médio Oriente. As pessoas identificaram-se com a melancolia dos meus filmes mas, sem dizer que os portugueses não têm sentido de humor, tenho a certeza que têm, mas de certa forma não se sentiram autorizados a rir dos meus filmes.
Deve ter começado a desenvolver o seu projeto antes do 7 de outubro de 2023.
Começámos a filmar exatamente um mês depois, a 7 de novembro. O rapaz do filme é de Gaza, chegou a Atenas com a mãe e o irmão dois ou três anos antes. Muitos dos figurantes que se veem a viver num prédio ocupado são de Gaza. E toda a gente ficou afetada com o que se via nas notícias. Ao ponto de ter de dizer aos atores para não ficarem a ver televisão até às três da manhã, tínhamos um filme para fazer. O melhor que podíamos fazer era fazer este filme.
Sentiu necessidade de mudar alguma coisa em função do que se passou depois dessa data?
Eu venho do documentário, estou habituado a trabalhar com o material que tenho à mão. Houve uma altura em que me senti tentado a trazer para o filme algumas histórias que se estavam a passar. Por exemplo, filmei uma cena em que o Chatila estava na casa-de-banho e outro palestiniano vinha dizer-lhe o que se estava a passar com a família em Gaza. Mas percebi que estava a contar uma história, que tinha uma direção, e este interlúdio dava a impressão que estava a ser político, que estava a fazer um manifesto.
Os filmes de propaganda só se dirigem a quem já está sensibilizado…
Sim, senti que estava a dizer ao espetador para dar atenção a algo que eu tinha receio que ele não estivesse a notar. Mas era uma falta de respeito para com o espetador. O espetador é inteligente, sabe o que se está a passar. E pode interpretar o que está por detrás da história. Não gosto de filmes que tentam ser um veículo para um certo tipo de ativismo. É por isso que os meus protagonistas são pequenos bandidos.
É essa precisamente a força do filme, não os mostra como heróis ou apenas vítimas, mas como pessoas de carne e osso, com as suas virtudes e os seus defeitos.
São pecadores, enganam outras pessoas. É a partir daí que se torna interessante para mim, pelo menos enquanto espetador. Seguir personagens que são humanas, no sentido mais profundo do termo. São imperfeitos. Mas porque são obrigados a cometer aqueles crimes? Porque nasceram loucos ou narcisistas? São as escolhas deles ou são as circunstâncias que os forçam? Estou a dar ao espetador a possibilidade de fazerem as suas próprias escolhas.
Teve problemas com essa opção, na produção do filme?
Muitos dos produtores europeus, ou melhor, do norte, da parte mais privilegiada da Europa, perguntaram-me porque os representava como criminosos. Mas o que faríamos se estivéssemos na pele deles? Como pessoas sem estado, sem documentos, indesejados? Como se o mundo tudo não quisesse nada connosco? Como é que sobreviríamos?
É precisamente serem imperfeitos que nos permite identificar-nos com eles…
O cinema é uma ferramenta que nos conecta com a nossa humanidade e que transcende o que o sistema quer que sejamos. O sistema quer que nos sentemos com um copo na mão e que nos calemos. E que achemos que o problema são os refugiados que nos veem roubar os empregos. Espero que as pessoas vão ver o filme nas salas, juntos, como numa igreja. O sistema quer que vejamos os filmes sozinhos, em casa, nos nossos telefones.
Até que ponto a história, ou alguns dos seus episódios, se baseiam na sua própria experiência?
Não diretamente, porque tinha nove anos quando a minha família se mudou para a Dinamarca. Mas todos os meus amigos ficaram para trás, não conseguiram escapar. É a história deles. Poderia ter sido a minha história, se não tivesse tido aquele privilégio. O filme é baseado em muitas histórias verídicas. O Reda é baseado num Reda real, que filmei em dois dos meus documentários. Chatila é o nome de uma pessoa que conheci em Atenas. Toda a história de Tatiana e do rapaz é baseada numa história real.
E os seus dois atores, como é que os escolheu? Têm uma presença magnética no filme.
Foi um processo muito longo, durou dois anos e meio. Como é que se conseguem os atores perfeitos entre uma comunidade de exilados, numa diáspora pelo mundo fora? Há atores de Berlim, de Ramallah, da Jordânia. O miúdo é de Atenas. Foi um pesadelo logístico, com todos os vistos e autorizações que foram necessárias. Nem todas as embaixadas quiseram colaborar connosco. Por vezes tínhamos a pessoa certa, mas a embaixada não lhe dava o visto. Mas eu não podia fazer compromissos.
Será possível que o seu filme seja visto em Gaza?
Vou ser franco consigo, essa pergunta é um pouco absurda, porque Gaza já não existe. Está completamente destruída. Não passa de um campo de concentração. Eles destruíram tudo, hospitais, tudo o que era cultura, escolas, universidades, a agricultura, tudo. Não sei o que vai acontecer com Gaza.
E pensa passar o filme em Israel? Há uma parte da população que deseja a paz.
Não acredito em Israel. Não posso passar os meus filmes numa colónia sionista. Só os posso passar em territórios históricos da Palestina ou que não recebam apoio do governo israelita. Israel, como existe hoje, é uma desgraça para a humanidade. Todos os meus colegas realizadores ou académicos deviam pensar duas vezes antes de aceitar falar numa universidade ou mostrar lá os seus filmes. Foi como no apartheid, as pessoas começaram a boicotar a África do Sul. A coisa mais fácil para lutar contra isto é dizer que não!
Há dias o realizador português Pedro Pinho recusou a seleção do seu último filme para o festival de Jerusalém.
Sim ouvi falar nisso. Há pessoas com coragem que pensam que este é o preço mínimo a pagar. Nada se compara com uma pessoa que é morta a tiro quando está numa fila para arranjar comida. Porque se iria ao festival de Jerusalém? O que estamos a testemunhar é uma página muito negra na história da humanidade.