Makoto Shinkai, mestre da animação japonesa, fala ao "Jornal de Notícias" sobre "Suzume", já nas salas portuguesas.
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Autor de filmes de culto na tradição anime, como "Vozes de uma Estrela Distante", "Cinco Centímetros por Segundo", "O Jardim das Palavras" ou "O Tempo Contigo", o japonês Makoto Shinkai é tão popular que até tem um asteróide com o seu nome. O seu último filme, "Suzume", esteve em competição em Berlim, o que não acontecia com uma animação desde "A Viagem de Chihiro", do seu pai espiritual, Hayao Miyazaki. Suzume é o nome de uma adolescente que ficou órfã na sequência do trágico terramoto de 2012 e que acompanhamos na sua viagem, entre a realidade e a fantasia. Em Berlim, estivemos a falar com o realizador.
Os seus filmes têm muitas vezes personagens que estão a passar da adolescência para a idade adulta.
Tem a ver essencialmente com o facto da audiência para os filmes de animação ser composta sobretudo por jovens. A animação também me ajudou muito quando eu era novo. Quando estava com problemas na escola encontrei conforto em filmes de animação. Com os meus filmes quero de certa forma retribuir esse conforto aos mais jovens, que possam estar a passar pelos mesmos problemas hoje em dia.
Neste filme em particular parece haver uma considerável diferença de idades entre as personagens principais.
Talvez em outros filmes tenha sido um truque dramático que usei, mas em "Suzume" não foi consciente. O elemento de história de amor tem tido cada vez menos importância nos meus filmes. A relação entre os dois protagonistas podia ser a mesma se fossem dois rapazes ou duas raparigas.
Foi uma catástrofe natural que esteve na base da criação desta história...
No Japão o solo é muito frágil. Treme muitas vezes, por causa dos terramotos, sabemos que não durará para sempre. Toda a gente está consciente disso. Quando cheguei à Europa vi tantos prédios construídos há mais de duzentos anos. No Japão não os conseguimos ter, porque estamos muito sujeitos a catástrofes naturais. Há esta noção de que nada dura para sempre. É algo de triste, partilhado sobretudo pelos mais idosos, mas que também nos influencia, enquanto criadores de animação.
Quando é que teve a ideia de pegar nessa catástrofe e construir uma história?
Quis que o filme fosse um retrato do Japão de hoje. A primeira ideia foi mostrar os lugares abandonados ou em ruínas, onde já não vivesse ninguém, por causa do declínio da população, locais que se tornaram inabitáveis, por causa das catástrofes naturais. Quando pensei onde a viagem de Suzume a iria levar, escolhi a região noroeste do país, onde o terramoto se fez mais sentir. Tinha de estar representada no filme, sem ela não iria funcionar. Não é possível falar do Japão de hoje sem referir o terramoto de 2012.
Qual a importância de ter uma animação em competição num festival de cinema como o de Berlim?
É como um sonho para mim. Há vinte anos, quando Miyazaki foi convidado para a Berlinale com "A Viagem de Chihiro" e ganhou o Urso de Ouro, foi um acontecimento no Japão. Nessa altura eu estava a começar a minha carreira como realizador de animação e não pensava que a animação japonesa pudesse chegar tão longe.
Suzume vive com a tia. Por exemplo, o jovem de "E.T.", de Spielberg, vivia só com a mãe, não havia figura paternal...
Suzume é uma órfã, como há muitos casos na região do Japão onde se fez mais sentir o terramoto. Há muitos jovens que tiveram de ir viver com outros membros das suas famílias em regiões diferentes. Foi essa a minha inspiração. Mas é verdade que em muitas bandas desenhadas e filmes de animação japoneses é frequente o protagonista só ter um dos pais. Torna as relações entre as personagens mais simples.
No caso de Suzume ela já não vivia com o pai, quando o desastre ocorreu...
Sim, assume-se que os pais se divorciaram, quando era pequena. Depois perdeu a mãe no terramoto. Posso dizer que houve razões pessoais para ser assim. Também tenho uma filha. Temos uma boa relação, mas não tenho a certeza do que posso fazer por ela, do meu papel como pai. Foi por isso que era muito difícil para mim criar essa figura do pai.
Pode falar um pouco dos aspetos mitológicos da história?
Inspirei-me no povo do período Edo, porque pensavam que os terramotos tinham lugar porque havia uma criatura gigante por debaixo da terra e que esta criatura era retida por pedras-chave. Quando estas se moviam ocorria um tremor de terra.
Quais foram os principais desafios da produção e até que ponto a pandemia foi um problema?
A parte visual foi muito exigente, porque tínhamos desenhos à mão misturados com animação por computador. Suzume foi desenhada à mão. A produção decorreu durante a pandemia mas não foi um problema porque hoje temos tantas ferramentas que podemos utilizar para estar em contacto uns com os outros. O que me preocupou é que devido a esta pandemia que afetou o mundo os japoneses pudessem esquecer o terramoto.
No filme há uma utilização das redes sociais, na viagem que a personagem de Suzume atravessa...
A vida dos jovens de hoje é assim. E não são só os jovens que usam as redes sociais, nós adultos também as usamos de forma muito intensiva. A nossa vida é dominada por mensagens eletrónicas. Quando sai de casa, Suzume só leva com ela um smartphone. Não precisa de mais nada.
Sente que tem de resistir a essas tecnologias, que surgem todos os dias, para manter o seu cinema numa forma mais pura?
Há novas tecnologias, que podem contar histórias por si mesmas, como o ChatGPT. Não a utilizo neste momento, mas é muito provável que a utilize no futuro. Quando comecei, há vinte anos, a animação japonesa estava a passar do analógico para o digital. Já comecei com o digital. Não vejo que tenha de ficar com a animação tradicional. Estou aberto a todas as tecnologias que me ajudem a ser mais criativo.
Porque escolheu uma cadeira como personagem central?
Quis fazer um filme divertido, que chegasse a um público muito vasto. Como o pano de fundo da história é muito triste, com uma órfã que acaba de perder a mãe e tem de enfrentar o seu passado, quis que os espectadores se rissem. Precisávamos de um parceiro que acompanhasse Suzume no seu percurso, uma personagem que fosse divertida e adorável, que aligeirasse o tom do filme.