Primeira edição do Festival de Cinema decorre em Malta e tem um filme português a concurso. Realizador Marco Martins falou das diferenças entre cinema de Hollywood e cinema de autor.
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O que têm em comum filmes como “Popeye” ou “Tróia”, “O Gladiador” ou “Munique”, “Assassin’s Creed” ou “Alexandre, o Grande”, já para não referir a mítica série televisiva “Game of Thrones”? A resposta é simples: foram todos rodados, parcial ou totalmente, em Malta, a pequena ilha mediterrânica ao sul da Sicília e com uma das frentes virada para o norte de África.
As razões são várias e também simples de explicar. A localização da ilha, a cor muito particular da pedra com que as suas casas são construídas há séculos, os vestígios de várias civilizações que por aqui passaram, dos otomanos aos cavaleiros que lhe deram o nome e que incluiu um português, as condições climatéricas e a luz também muito particular que banha a ilha durante grande parte do ano, a sua fantástica medina.
Aliás, acabaram há pouco as filmagens do novo “Napoleão”, de Ridley Scott, que se encontra neste momento de novo na ilha a filmar a sequela de “Gladiator”. E está também preparado um estúdio de cinema que, no futuro, oferecerá ainda melhores condições às produções que decidirem filmar no território.
Toda esta atividade deve-se também, muito naturalmente, às condições que a Malta Film Commission oferece a quem aqui quiser filmar, e que tornaram a ilha, desde há cerca de duas dezenas de anos, um dos maiores centros cinematográficos do mundo.
Não é por isso de estranhar que a região tenha organizado pela primeira vez um Festival de Cinema Mediterrânico de Malta, embora a consideração de mediterrânico esteja confinada a países da comunidade europeia, com uma extensão a Portugal, politicamente considerado ainda como mediterrânico, apesar da sua costa ser eminentemente atlântica.
Filme português "Alma viva" está em competição
O festival decorre em La Valletta até ao próximo sábado e inclui nove filmes a concurso, um de cada um dos países envolvidos, Croácia, Chipre, França, Grécia, Itália, Malta, Portugal, Eslovénia e Espanha. É curiosa, no entanto, a escolha dos filmes a concurso, visto trata-se em grande parte de títulos que já terminaram a sua presença em sala e no circuito de festivais, como o português “Alma viva”, da francesa de ascendência portuguesa Cristéle Alves Meira.
Estreado mundialmente na Semana da Crítica de Cannes, o filme seria o pré-candidato português aos Oscars de 2022 - mas não conseguiu chegar à lista de finalistas nomeados.
Também já com algum tempo de estreia, juntam-se ao português o espanhol “Alcarrás”, Urso de Ouro em Berlim 2022, o francês “Saint Omer” ou o italiano “Nostalgia”. O croata “Safe Place” já pode ser visto em streaming.
O júri internacional segue a mesma lógica do festival, com nove membros, um de cada país, cabendo ao jornalista José Vieira Mendes representar o nosso país.
Discutir o futuro do cinema mundial
Esta seleção, a que se juntam algumas sessões extra-concurso e estreias mundiais e europeias, não será afinal o motivo maior para fazer um festival de cinema em Malta.
Mais do que os filmes, o que o festival discute é o presente e o futuro do cinema mediterrânico e mundial, com um programa diário de debates, conferências e masterclasses, animadas por respresentantes de um conjunto de países que ultrapassa em muito a dimensão mediterrânica da organização.
Entre outros momentos de discussão já efetuados ou ainda a realizar, destacam-se conversas em torno de temas como “Encontrar dinheiro para fazer um filme”, “Modelos de financiamento”, “Tendências da Inteligência Artifical e da tecnologia digital” ou “Produzir para cinema e televisão”. Joaquim de Almeida fará uma masterclass sobre interpretação.
“Os filmes independentes não competem com Hollywood”
Entretanto, o realizador Marco Martins foi um dos intervenientes do debate sobre o tema Cinema independente e de autor (tradução possível de "arthouse") na era digital: desafios e oportunidades no meio dos blockbusters e das plataformas.
Marco Martins começou por questionar o que é isso de "arthouse". “Há filmes nessa categoria que podem chegar de Hollywood e filmes de pequenos mercados que não podem ser considerados como tal. Em Portugal, os cinemas são dominados pelas grandes companhias e pela distribuição de filmes norte-americanos. Mas, felizmente, ainda há espaço para filmes portugueses e filmes independentes. Mas os filmes independentes não competem com Hollywood, são mercados completamente diferentes”, sublinhou.
"Art house: filme que não faz espectadores"
O realizador português manifestou-se satisfeito com o facto de haver hoje mais financiamento para produções independentes. “Há mais filmes portugueses hoje do que há 20 anos. E talvez haja mais público. Os meus filmes não têm o público dos filmes de Hollywood, mas têm um público”, admitiu, antes de fazer rir mais de meia centena de membros da indústria que se encontravam na sala: “Hoje de manhã, quando me preparava para esta conferência, fui à internet procurar o significado de 'arthouse film' e o melhor que encontrei foi filme que não faz espectadores!”.
Marco Martins não terminou a sua intervenção sem lamentar a existência de muito poucos cinemas independentes. “A maioria das salas estão em multiplexes. Lisboa tem três salas independentes. Mas se conseguirmos manter os nossos filmes nessas salas umas cinco ou seis semanas, conseguimos ter algum público”, concluiu.
O Festival de Malta termina no próximo sábado, com o que se anuncia uma apoteótica cerimónia de encerramento, a realizar no icónico Fort Manoel, em Gzira, uma das localidades de Malta, cuja região conhecida como as três cidades, em frente a La Valletta, serviu também para ser a Marselha da mais recente versão de “O Conde do Monte Cristo”.
A ilha vive já um dos momentos altos do ano, com fogos de artifício diários, milhares de turistas nas ruas, nos seus muitos bares e restaurantes e o anúncio oficial do Euro Pride. E é por aqui que se podem ver outros dos muitos convidados do festival, como Eric Bana, Jared Harris, Natascha McElhone, Nastassja Kinski ou a portuguesa Daniela Melchior, cujo último trabalho em Hollywood, “Velocidade Furiosa X”, ainda se encontra em cartaz em Portugal e lidera há semanas, o top dos mais vistos do ano.