Escritos do mestre portuense datados de 1933 a 2014 reunidos em livro.
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"Manoel de Oliveira - Ditos e escritos" é o volume inaugural da Coleção Casa do Cinema. Desenhada por Siza Vieira e situada no Parque de Serralves, no Porto, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira é presidida por António Preto (que assina o prefácio do livro) e foi inaugurada faz hoje precisamente dois anos.
A obra divide-se em três grandes blocos: "Arquivo de impressões ocasionais", "Sobre cinema e filmes" e "Cineastas, atores e críticos". Sem respeitar deliberadamente uma ordem cronológica, os três módulos incluem textos escritos pelo cineasta desde 1933, a propósito da produção e exibição do seu primeiro filme, "Douro, faina fluvial", até 2014, ano em que completou o seu derradeiro trabalho, "O velho do Restelo". Oliveira deixar-nos-ia no ano seguinte, aos 106 anos.
O primeiro bloco reúne pequenos textos e comentários dispersos, escritos no mais variado tipo de suporte, de páginas de jornais a abas de um envelope. A segunda parte inclui trabalhos mais elaborados, destinados a discursos e outras intervenções e que abrigam já um pensamento mais estruturado sobre a matéria cinematográfica. E, como o título indica, o terceiro capítulo contém textos sobre autores da sua família cinematográfica ou críticos a quem agradece as análises a alguns dos seus filmes.
O título da obra, "Ditos e escritos", é particularmente feliz. Mais do que um escritor, Oliveira era um extraordinário orador, e são muitos os momentos em que pede desculpa pelas suas parcas qualidades literárias. Se tal não é evidentemente verdade - Oliveira escrevia também como mais ninguém - e deriva da sua humildade, quem teve oportunidade de com ele conviver, em entrevistas, jantares e homenagens, recordar-se-á da sua imensa cultura, das reflexões filosóficas sobre a vida passadas depois a filme. Algo que apenas alguém que viveu intensamente, como Manoel de Oliveira viveu, seria capaz de pensar, de sentir, de exprimir. É assim que ao ler estes escritos, é como se estivéssemos a ouvir esses mesmos ditos da boca do cineasta, homem de extrema generosidade e, sabe quem o conheceu e poderá parecer estranho a quem não teve essa possibilidade, também de um muito refinado humor e irreverência.
A alma inquieta
Oliveira nasceu no Porto no final de 1908, ainda o cinema dava os primeiros passos. Os Lumière lançaram a invenção em 1895 mas não acreditaram muito nela. Um outro portuense, o fotógrafo Aurélio da Paz dos Reis, trouxe-o para o nosso país. Georges Méliès não deu ouvidos aos conterrâneos de Lyon e transformou o cinema em arte de contar histórias e de maravilhar.
Manoel de Oliveira viveu a passagem do mudo ao sonoro. O seu primeiro filme foi ainda rodado sem som. Assistiu à generalização da cor, que estudou na Alemanha e praticou pela primeira vez no lindíssimo "O pintor e a cidade", de 1956. Teve ainda tempo de testemunhar a revolução digital. E refletiu, ao longo da vida - e destes ditos e escritos - sobre a evolução do cinema, a ligação às outras artes, a dicotomia entre arte e indústria, a questão dos públicos.
E, conversando com o próprio cinema na ocasião do centenário das primeiras projeções públicas, deixou-lhe um conselho: "Sei que andas preocupado com o teu futuro e minha alma anda inquieta. Gostaria de te poder dizer o que o futuro te reserva, mas tu sabes tão bem como eu como tudo que se imagina sobre o futuro sai inesperado e bem diferente. Sabes, eu gostaria de comemorar contigo o teu bicentenário, mas como não é certo eu poder estar presente, deixo-te aqui esta recomendação amiga: tem cuidado e olha por ti. Teu velho amante, e teu fiel utilizador".