Ao tempo em que Manoel de Oliveira viu, no Porto, pela primeira vez, a luz do dia, a cidade afirmava-se, sobretudo, por meio daquelas características que lhe deram o direito a usar o honroso titulo de "capital do trabalho".
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Acordava-se cedo.
Muito antes de o sol nascer, já os silvos das sirenes das fábricas, como se fossem o despertador coletivo da urbe, se faziam ouvir a chamar os operários às suas obrigações diárias, na fábrica, junto do tear; moldando o ferro, na bigorna; ou, atrás do balcão, estendendo o côvado. Manoel de Oliveira conviveu de perto com esta realidade, já que o seu pai, Francisco José Oliveira, era proprietário da Fábrica 9 de julho - Fiação de lã, passamanerias, tinturaria, inaugurada em 1904.
Aliás, Francisco foi um dos primeiros fabricantes de lâmpadas elétricas em Portugal.
Era ainda o tempo das romarias, como a que, pelos Reis, se fazia junto à capela dos Três Reis Magos, que ficava à entrada da desaparecida Rua do Laranjal, nas traseiras do antigo edifício da Câmara, com a fachada voltada para a Praça de D. Pedro; do "Senhor Fora", curiosa procissão que acompanhava, pelas ruas da cidade, o sagrado Viático quando era levado a um enfermo; das pantagruélicas ceias nos restaurantes "João do Buraco", no "Túnel" ou no "Adriano"; e das enchentes nos teatros, quando eram levadas à cena as revistas tipicamente tripeiras da incomparável parceria Arnaldo Leite e Carvalho Barbosa.
A Avenida dos Aliados ainda não existia e a atual Praça da Liberdade, então designada Praça de D. Pedro, é que era o verdadeiro centro cívico, cultural, político e económico do Porto.
Os brasileiros de "torna-viagem", que investiam na banca e nos seguros, iam à Praça para saberem como corria o sistema cambial; os políticos passeavam, ao redor da estátua equestre de D. Pedro IV, de braço dado com os lojistas, na ânsia de lhes conquistar a simpatia e... os votos; os literatos mostravam uns aos outros a suas últimas produções; e os republicanos conspiravam nos cafés do costume...
Meses antes do nascimento de Manoel de Oliveira, a 1 de fevereiro de 1908, a Praça encheu-se. Uma multidão ordeira e silenciosa aguardava novas sobre o regicídio que na manhã desse dia ocorrera na capital.
Dez meses depois, a novembro, a mesma Praça, com os edifícios engalanados com bandeiras e colgaduras, voltou a encher-se de gente, agora para receber em triunfo a visita do novo rei de Portugal: D. Manuel II.
Menos de dois anos depois daquela visita régia, a 5 de outono de 1910, uma multidão incontável voltou a encher a Praça, desta feita para vitoriar a República, que acabava de ser implantada em Lisboa.
Quando Manoel de Oliveira nasceu, ainda havia, no sítio onde dez anos depois se abriu a Avenida dos Aliados, os Lavadouros, a Cancela Velha e as ruas de D. Pedro e do Laranjal. Nesta, funcionou um dos mais conhecidos cafés dos começos do século XX: o "primavera", famoso por causa das espanholas que nele atuavam.
Com o desaparecimento da Rua do Laranjal, o café "Primavera" transferiu-se para uma vivenda da Travessa da Picaria, de que resta somente um correr de casas a nascente da atual Praça de D. Filipa de Lencastre, entre as esquinas das ruas da Picaria e do Almada. Manoel de Oliveira, na sua juventude, ainda frequentou o "Primavera" na sua segunda fase.