Concerto levou público a celebrar a carreira e metamorfose do artista britânico, dez anos depois do seu primeiro disco. Meo Kalorama arrancou no Parque da Bela Vista e por lá fica até sábado. Massive Attack, Jalen Ngonda e Loyle Carner foram outros encantos da primeira noite.
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Das coincidências ou incidências da vida: a 31 agosto de 2014 era editado o terceiro single do primeiro disco de um então virtualmente desconhecido Sam Smith. “In the lonely hour”, álbum de estreia, tinha sido lançado em maio, já produzira os bem acolhidos singles "Money on my mind " e " Stay with me”, e trazia agora “I'm not the only one”, a segunda música tocada no Meo Kalorama desta quinta-feira, 29 de agosto, quase 10 anos certos depois.
Uma década pode ser uma vida ou quase nada: para o artista britânico foi tudo, foi sucesso, dor, evolução e metamorfose, e com 32 anos é outra a pessoa que se apresenta em palco em Lisboa, face ao tímido britânico que então despontou.
Desde que se assumiu como pessoa não binária e se tornou num ícone LGBTQ+, Smith mudou de estilo, de apresentação, de som, surge feliz, sorridente, livre, e faz questão de o dizer. “Tinha 19 anos quando comecei a fazer este disco [“In the lonely hour”, cuja efeméride da primeira década também comenta] e só quero dizer a quem esteve comigo desde o início: eu vejo-vos, eu amo-vos e agradeço por me apoiarem a ajudarem a viver os meus sonhos”, diz a dado ponto.
Antes da declaração que resume esta nova fase da sua vida, Smith entrara em palco à hora certa (23.10 horas), logo com “Stay with me”, o quase aniversariante “I'm not the only one” e “Like I can”.
Perante aquela que foi a primeira grande enchente do palco principal, primeiro concerto de cantos e palmas mais constantes, Smith começa de preto, lantejoulas, bigode ligeiramente repuxado para cima “a la” Dom Quixote, uma gigante estátua da deusa Afrodite em palco como fundo com mensagens de liberdade inscritas, uma banda completa e um coro a acompanhar.
Ao fim do terceiro tema, já o britânico declara como o público português é maravilhoso, como sempre que passa por Portugal tem as melhores experiências, e que esta noite não deverá ser exceção. “Bem-vindos à Gloria Tour”, atira ainda. “Estamos tão felizes de estar convosco, faltam quatro espetáculos da tour e não poderia pensar num sítio melhor para um dos últimos concertos”.
Diz ainda como este espetáculo é sobre muitas coisas, mas sobretudo sobre a liberdade. "Por isso, divirtam-se”, pede, entre "Too good at goodbyes", “Diamonds” e “How do you sleep?”, que confessa ser um dos seus temas preferidos.
Sobre o muito bem acolhido “Dancing with a stranger”, explica ser acerca de um rapaz que lhe partiu o coração, dedicando-a a todos aqueles que também já tiveram um coração partido; e assim vai correndo o concerto, Smith sempre conversador e sorridente, sempre a dançar, sempre a acenar e a mandar beijinhos ao público ou a pessoas que parece ir vendo, como se seus, muitos, amigos se tratassem.
Depois de uma breve saída, entra em palco com um vestido de gala preto e há muito mais para vir, de “Lay me down” com a “grande amiga” LaDorna Harley-Peters”, a “Loose you”, “Promises”, ou “Desire, numa fase do concerto mais dançável, muitos bailarinos em palco, Sam Smith mais fora de visibilidade – combinação certa para algumas primeiras saídas antecipadas do público, ou não fosse sexta-feira dia de trabalho.
Só que haveria ainda momentos como “Latch”, “I feel love” de Donna Summer, o tema título da tour, “Gloria” e, claro, "Unholy”, aqui Smith já de corpete preto, saia de folhos e luvas de renda, aparentemente a viver a sua vida e versão mais livre e feliz, tal como pede ao seu público para fazer.
Massive Attack políticos e nostálgicos
Antes, pelo palco principal passaram os Massive Attack e, aos primeiros acordes de “Risingson”, tema que dá início ao concerto do grupo no 3º Meo Kalorama, lembrámo-nos logo das saudades que tínhamos deles, e de Tricky, dos Portishead, de todo o trip-hop nascido em Bristol e que marcou uma ou várias gerações.
Formados em 1988 naquela cidade do Reino Unido que se tornou mítica pela música que dela brotou, os Massive Attack – Grant Marshall ou Daddy G, e Robert Del Naja, ou 3D, (será ele Banksy? Não será? Provavelmente nunca saberemos), agora sem o membro fundador Tricky, estiveram em suspenso mas fizeram falta à música, então não fizeram.
Regressaram à estrada em 2019 mas cortaram a tour por doença, eram para voltar em 2022 e de novo o adiamento, mas agora estão como os conhecemos: tão sublimemente produzidos, tão cristalinos e hipnóticos, densos e sombrios, tão envolventes e políticos.
Ainda antes de entrar a música, já há vídeos em palco sobre autoestima de jovens e sobre animais a usar um computador. Em todo o concerto, são constantes as imagens ou mensagens, por vezes crípticas, sobre profissões, tecnologia, armamento, guerra, refugiados, algumas com legendas em português.
“Boa noite” diz 3D também em português, antes de chamar o mítico Horace Andy perante uma grande ovação, e depois Elizabeth Fraser para uma ovação ainda maior, a ex- vocalista dos Cocteau Twins com o seu cabelo curto mas agora branco, a voz, igualzinha à de sempre.
Nos ecrãs continua a falar-se de globalização, imigração, de Palestina (também presente numa braçadeira do vocalista), de Gaza, Ucrânia, nacionalismos, enquanto 3D canta sobre o oposto, pede amor (“love, love, love”) com batidas trip hop por detrás e o sol a acabar de se pôr, é perfeito.
Tal como é quando, depois de passagens pelo palco dos Young Fathers, Liz volta e canta “Song to the siren” de Tim Buckley, e reza a lenda que Frasier terá namorado o seu malogrado e genial filho, Jeff Buckley. A versão do tema em Lisboa foi bem diferente da dos This Mortal Coil (grupo também com Fraser) que o celebrizou, e talvez por isso ele tenha passado despercebido ao cada vez mais volumoso público presente, não deixando por isso de ser especial.
Depois de percebermos que as mensagens fazem ligação com as letras ou com o tema de cada música, em “Inertia creeps” passam parangonas sobre as Kardashians ou Leonardo di Caprio em palco, mas enquanto isso, não a inércia mas a eletrizante batida do tema trepa pelo recinto acima, e há duas meninas, de uns 5 e 7 anos, a dançar uma espécie de capoeira ao ritmo do som, enquanto uma mulher mais velha dança, descalça, de forma quase hipnótica.
Houve ainda tempo para temas como “Angel” ou “Karmacoma”, e verdadeiros clássicos, “Unfinished Sympathy”, ou “Safe from harm”, cantados por Deborah Miller, até ao final.
A descoberta de Jalen Ngonda
Com o cancelamento inesperado dos Fever Ray para o “prime time” do palco San Miguel, Loyle Carner, novo bastião do hip-hop do Reino Unido e que fechava esta quinta-feira o Palco Lisboa, passou para o espaço e lugar do projeto sueco, às 22 horas.
Perante o dilema de ouvir Carner ou, no novo Palco Lisboa, espreitar o norte-americano Jalen Ngonda à mesma hora, o público claramente dividiu-se, mas a verdade é que ninguém terá saído defraudado: no primeiro concerto ouviu-se bom rap e hip hop pela voz de um incansável Carner, e, no espaço mais pequeno, Ngonda foi uma das grandes surpresas, ou confirmações, da primeira noite do festival.
Misto de artista dos anos 70 com ícones como Michael Jackson ou os mestres da Motown, dono de uma voz inacreditável, tanto nos agudos e falsetes como nos graves, Jalen Ngonda diz a dado ponto de um concerto extraordinário, ser esta a sua primeira vez em Portugal, e “what a beautiful ass country” ele é, acrescenta, perante um público eufórico.
Noutra altura, enquanto a sua banda faz uma “pausa para um cigarro”, Jalen fica sozinho em palco, com uma guitarra, a cantar puro blues, Motown e soul, e a deixar-nos a pensar que é muitas vezes por concertos assim que continua a valer a pena ir a festivais de verão.
Hoje e sábado há mais Kalorama, num menu musical que inclui nomes como LCD Soundsystem, The Kills, dEUS e Raye.