Marcio Pitliuk, investigador brasileiro especializado no Holocausto, explica no livro "O engenheiro da morte" a participação das elites alemãs no conflito.
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Sem a conivência da sociedade alemã, sobretudo das suas elites, Hitler jamais teria conseguido levar por diante os seus planos de extermínio do povo judeu. A tese é do investigador e escritor brasileiro Marcio Pitliuk, cujo novo livro, "O engenheiro da morte", detalha a forma entusiástica como a grande maioria dos alemães aderiram às teses do ditador.
No seu novo livro, aborda a participação ativa das elites alemãs no III Reich. Há razões objetivas para acreditarmos que o Holocausto não foi só o resultado da ação de um homem louco?
Sim, podemos dizer isso. Foi Hitler quem teve a ideia de exterminar os judeus da Alemanha e da Europa, mas, se ele não tivesse tido o apoio de muitos outros - até das populações de países como a Ucrânia, Lituânia ou Hungria - não teria conseguido aquilo a que se propunha. No início, fuzilavam os judeus, mas a dado ponto, com a quantidade de deportações, tiveram que desenvolver técnicas de assassinato em massa. Aí é que entraram as empresas alemãs. Com a necessidade de eliminar milhões de corpos, tiveram que encontrar soluções empresariais e industriais.
Deparou-se com muitas surpresas durante a pesquisa que fez?
Quem não conhece o Holocausto acha que os assassinatos foram feitos sem planeamento. Mas não se matam seis milhões de pessoas sem uma grande organização. Durante a pesquisa pude ver que muitas empresas contribuíram para esses campos de extermínio e usaram mão de obra escrava. Toda a gente beneficiou. Até as leis raciais beneficiaram muitos. Quando, por exemplo, proibiram os advogados judeus de exercerem a sua profissão, houve quem lucrasse. Em Berlim, como 25% dos advogados eram judeus, o mercado aumentou nessa proporção para os restantes.
Crê, então, que a adesão das elites à ideologia nazi foi de ordem racional e não se deveu tanto ao facto de Hitler apelar a uma dimensão irracional?
O povo alemão não é irracional, como o italiano ou latino. É claro que já havia um antissemitismo na sociedade alemã. Penso que se tratou de uma mistura entre o lado racional com o sentimento antissemita que já existia na sociedade alemã. Se quisessem exterminar outros povos, talvez não tivessem a mesma adesão. O mais chocante é verificar que apenas existia 650 mil judeus na Alemanha, o que correspondia a 0,8% da população. Eram poucos, mas incomodavam tanto que a maioria da população aderiu à ideia de extermínio em massa dessa minoria.
No livro, fala mesmo no nome empresas alemãs colaboracionistas com os nazis. Muitas delas gozam ainda hoje de grande popularidade. Não foram devidamente sancionadas?
É difícil. Por exemplo, Hugo Boss era, na altura, o alfaiate do III Reich e desenhou os uniformes nazis. Hoje, é uma empresa de capital aberto, com investidores de todo o Mundo, incluindo muitos judeus. O mesmo se passa com a Siemens ou Volkswagen. São empresas multinacionais. Não se pode dizer hoje que sejam alemãs. Essas empresas pagaram indemnizações. Algumas fecharam, como a empresa que fabricou os fornos crematórios. A IG Farben, que era a maior empresa química da época, deixou de existir depois da guerra. Como, pouco depois do final do conflito, começou a Guerra Fria, o inimigo passou a ser Estaline e a Rússia. Para fazer frente ao avanço da URSS na Europa, os inimigos do passado passaram a ser os amigos do presente.
Muito ficou por fazer no que toca às reparações das atrocidades cometidas pelos nazis?
Sim. Hoje, no Brasil, ainda existem 200 sobreviventes dos campos de concentração que têm direito a uma verba que varia de acordo com o seu grau de exposição ao Holocausto. Se foi um escravo num campo de extermínio ou um refugiado, por exemplo. Um sobrevivente ganha em média 300 euros por cada três meses, o que é muito pouco. Como há menos beneficiários, o fundo agora também paga tratamentos médicos. A reparação será sempre pequena, porque não há dinheiro que pague aquilo pelo qual essas pessoas passaram. Mas não há dúvida de que a Alemanha pagou pouco e continua a pagar pouco pelo crime inexplicável que cometeu.
Há muitos personagens nazis no livro. Foi-lhe fácil conter a repulsa ao lidar com os seus atos e comportamentos?
Há 12 anos que trabalho sobre o Holocausto. Vou todos os anos à Alemanha ou Polónia desenvolver pesquisas e entrevistar sobreviventes. Para mim, este assunto passou a ser História. Não tenho ligação emocional. Preciso de conhecer os factos para os colocar no papel. Como a minha formação é publicitária - trabalhei 35 anos nesse ramo -, sei comunicar. Não tenho competência para escrever um tratado de História, mas, como sou criativo, consigo transformar os assuntos em romances ou ficções baseadas em acontecimentos reais.
O que, à partida, até atrai mais os leitores.
Sim, e procuro em cada livro focar um tema diferente. No meu primeiro livro, "O homem que venceu Hitler", falo de uma polaca que salvou um rapaz judeu; no segundo, "A alpinista", destaco a participação das mulheres no conflito. Fala-se muito pouco disso, mas elas foram fundamentais para que o Holocausto fosse por diante. Em cada livro, procuro destacar um ângulo diferente.
Essa pesquisa permite-lhe concluir que a sociedade alemã da época era particularmente cruel?
No Museu do Holocausto de São Paulo, de que sou curador, há uma frase de Anne Frank numa das paredes: "Apesar de tudo, ainda acredito na bondade humana". Uma vez, estava no museu com um sobrevivente do Holocausto, que me disse que, depois de tudo aquilo por que tinha passado, já não acreditava na bondade dos homens. Eu também não. Vemos agora o Putin a destruir a Ucrânia em pleno século XXI. O Homem é mau. É ganancioso, quer dinheiro e poder.
Não aprendemos com os erros?
Até podemos aprender, mas achamos que é mais importante ganhar dinheiro e conquistar poder. O poder deixa os os homens fora de si.
Poder-se-ia pensar que, depois do Holocausto, o antissemitismo seria um assunto do passado, o que não é de todo verdade. Como explica as vagas sucessivas de antissemitismo pelo Mundo?
Assim como o Homem é mau, a maior parte dos países é antissemita. Muitos não o têm enraizado. No Brasil não é algo entranhado, mas na Europa, sim. Há muitos países antissemitas. A França, a Espanha, a Hungria...
E em Portugal, como avalia a situação?
Conheço pouco a fundo, porque em Portugal a comunidade judaica é muito pequena, ao contrário do que aconteceu há muitos séculos, quando a percentagem de judeus chegou a ser de 25%. Talvez não haja muito antissemitismo em Portugal, porque existem poucos judeus.
Acredita que o antissemitismo pode parecer adormecido, mas, perante acontecimentos excecionais, pode ressurgir em força?
Quem é antissemita não precisa de justificações para continuar a sê-lo. Não há argumentos racionais para odiar judeus. Pode-se dizer que esse ódio se deve ao facto de serem ricos, mas eu conheço muitos judeus pobres. Ou então acusar os judeus de terem assassinado Jesus Cristo. Mas isso foi há dois mil anos. Que culpa tenho eu disso? Quando andava na escola, muitos colegas diziam-me que eu era tão simpático que nem parecia judeu. Desde quando os judeus têm que ser antipáticos? Esses preconceitos já estão muito enraizados em quem não gosta de judeus. É claro que, num país como a Alemanha, na Segunda Guerra Mundial, esse sentimento foi trabalhado por Hitler e Goebbels para unir o povo em torno disso. Eles sabiam que essa brasa existia e bastaria soprar um pouco para pegar fogo.
Os últimos meses têm sido pródigos em acusações de nazismo. De que forma esse uso em massa pode banalizar a expressão?
A banalização do Holocausto é perigosa, porque agora tudo parece nazismo. No Mundo atual, chamar alguém de comunista não é visto como ofensa, mas nazi já é. Se o Putin acusasse Zelensky de ser comunista, este iria ter o apoio da esquerda inteira. Ao acusá-lo de ser nazi, o caso muda de figura, porque à partida ninguém o defende. Serve para a esquerda, a direito e o centro. O importante é ofender. Cada vez mais vamos ouvir essa acusação, pelo que um dos trabalhos que, como divulgador do Holocausto, vou enfrentar no futuro, é precisamente o risco de banalização. Não se pode comparar com o que aconteceu na Alemanha nazi com outro regime à face da Terra.
O risco de regresso do nazismo é real?
Pode voltar, sim. Há defensores do nazismo no Mundo inteiro, pelo que temos que estar sempre atentos.
Será possível voltar a ter o apoio em massa de uma população, como aconteceu na Alemanha?
É possível. O Holocausto não, porque existe o estado de Israel. A partir do momento em que ele existe, Israel vai defender os judeus em qualquer lugar do Mundo.
Sabem que têm, pelo menos, um sítio para onde ir.
Sim, e o próprio Governo vai defender-nos. O sistema nazi pode voltar em alguns lugares. Talvez não com esses nomes, que é muito ofensivo, mas uma extrema-direita muito agressiva, como tem a Hungria, é possível.
Em França, Marina Le Pen teve mais de 40% dos votos.
Ela e o pai são assumidos nazis, fascistas e antissemitas, mas não deixam de ter um apoio muito forte da sociedade.
Mudou a sua vida por completo em 2008, quando trocou a Publicidade pelo estudo e divulgação do Holocausto. Foi o momento definidor da sua vida?
Tinha 50 e poucos anos quando decidi fazer a Marcha da Vida, um evento mundial que foi criado no final de 1980 para levar as pessoas a conhecer os campos de concentração na Polónia. Em vez de fazer como toda a gente, resolvi documentar a experiência num filme, num livro de fotos e num programa de rádio. Fiz a viagem e o que tinha planeado. Nem sei como, porque nunca tinha feito nada parecido. O publicitário acha que sabe tudo. Na altura, entrevistei muitos sobreviventes do Holocausto e comecei a estudar o assunto a fundo. Apesar de ser judeu, não sabia muito sobre o Holocausto. O meu pai saiu da Lituânia em 1926 e a minha mãe já nasceu no Brasil. Comecei a aperceber-me de que muitos sobreviventes do Holocausto queriam contar as suas histórias, mas não sabiam para quem. Nesse momento, decidi vender a minha agência de publicidade e dedicar-me apenas a isto. Passei a ser o porta-voz dos sobreviventes. Escrevi mais livros, fiz filmes e levei-os até às universidades, onde fizeram palestras. A publicidade perdeu todo o sentido para mim a partir dessa altura. Que significado podia ter vender iogurtes e frigoríficos? Hoje dedico todo o meu tempo a esta causa.
Quando o último dos sobreviventes morrer, o risco de esquecimento do Holocausto será maior?
É importante falar sempre, até porque outros crimes vão acontecendo e isso vai para o passado. Como a Inquisição. Aconteceu há 500 anos. Não sei se em Portugal é um assunto muito falado, mas no Brasil não se sabe nada. O Holocausto aconteceu há 78 anos. Não pode ser esquecido. Esse trabalho de gravar os depoimentos tem que ser feito.