Maria de Medeiros e Laura Castro falam ao JN do filme "Aos nossos filhos", em que duas mulheres apaixonadas travam uma luta contra a sociedade para terem um filho.
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Maria de Medeiros apaixonou-se por uma peça de teatro de Laura Castro, com que percorreu todo o Brasil em três anos, tendo decidido assinar uma versão para cinema. A história relata a vida de duas mulheres que vivem juntas e querem ter um filho e da sua difícil aceitação pela sociedade. O filme já está nas salas e o JN falou com a realizadora Maria de Medeiros e com a argumentista e atriz Laura Castro.
A Maria tem uma atividade muito regular no cinema e no teatro. O que a fez voltar a realizar um filme?
Maria de Medeiros - Tenho a sensação de que vou sempre realizando. Mas é verdade que os filmes não são vistos em Portugal. Recebi como uma grata surpresa a peça da Laura, que me abriu toda uma perspetiva sobre coisas que desconhecia, como o que significa a luta para ter um filho num casal homoafetivo. Descobri toda uma realidade do Brasil, que nessa altura, em 2013, era um país socialmente adiantado em relação à Europa.
Que diferenças há entre a peça e o filme?
MM - A peça é só um longo diálogo entre duas personagens, mãe e filha, numa só noite. Há uma unidade de espaço e tempo, muito interessante teatralmente, mas fala-se de muita gente, de muitas situações passadas. Quis dar cor e carne a todas essas personagens e situações. E quis também filmar o Rio uma classe média que não se vê tanto no cinema.
Laura, como foi o primeiro encontro com a Maria?
Laura Castro - Um familiar deu-me o disco da Maria "Pássaros eternos", onde ela canta "Aos nossos filhos". Vi aí um sinal e decidi escrever-lhe. Ela respondeu e fizemos skype. Ela não sabe, mas eu tremia como varas verdes. Depois, além do privilégio de trabalhar com uma artista tão imensa, nasceu uma grande amizade.
Este laço brasileiro já existia?
MM - Já existia um laço muito forte, fiz vários filmes no Brasil. O "Repara bem" foi-me proposto pela Comissão de Amnistia e Reparação, que estava ajudar as vítimas da ditadura militar. Havia pessoas que, após 40 anos, ainda estavam nos ficheiros da polícia, clandestinas. E sempre adorei a música brasileira. Depois, claro, também levei com a terrível desilusão deste parêntesis de quatro anos sombrios.
Essa componente política do filme, com a repressão policial, já existia no projeto ou é reflexo dos anos negros de Jair Bolsonaro?
MM - A peça foi escrita num momento muito mais otimista do Brasil, mas o que gostei muito é que se sentia que era escrita a partir de uma verdade muito próxima da autora. Procurámos manter essa ligação à realidade, ir integrando no filme tudo o que se percebia na sociedade brasileira.
A peça é autobiográfica?
LC - Não é uma autobiografia, mas tem muito de mim. É uma luta muito minha. Sou mãe, sou lésbica, tenho quatro filhos. Não tinha referências, filmes para ver, livros para ler, cultura para consumir. Além dos direitos legais que conquistei e que fui vendo ser conquistados nesta última década, mundo fora. Tinha urgência em falar no assunto. A peça nasce junto dos meus filhos, escrevi-a amamentando.
Já se nota uma diferença, no Brasil em relação às questões LGBTI+?
LC - Já, muita, mesmo. Vivemos esse período [de Bolsonaro] com muito medo, com muitas coisas horrorosas. E voltamos a ter esperança, a resistência já estava cansada, mas as pessoas voltaram a respirar. A cultura respira aliviada, a saúde respira aliviada. Ainda há muita luta pela frente, mas há caminho para seguir.
A Maria sentia essa opressão quando ia ao Brasil?
MM - Dava a sensação de que havia uma destruição muito rápida, porque destruir é muito fácil e rápido. E reconstruir não. Isso era percetível e era desesperante. Antes, os projetos concretizavam-se mais rapidamente do que na Europa. Moro em França, o país da exceção cultural, mas eles obtinham apoio de forma mais fácil que em França.
Justine Triet, Palma de Ouro de Cannes, alertava para o perigo da exceção cultural desaparecer...
MM - Temos de estar muito atentos. O liberalismo ganha terreno, está muito mais organizado e atento às oportunidades. Mas é interessante o que está a acontecer em França, os franceses têm este espírito de perceber os momentos de perigo para a coletividade - e agem.