
"O que falta à humanidade é a capacidade de coexistir harmonicamente com o ecossistema do planeta"
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Reflexão sobre o espaço citadino e o seu impacto no indivíduo, "Os eletrões também devem ter alma" é o novo livro de poesia de Marília Miranda Lopes., que pretende propor uma alternativa às "cidades antipoéticas" em que vivemos, diz a autora ao "Jornal de Notícias"
Ao quinto livro de poesia, Marília Miranda Lopes lança um olhar inquisitivo sobre os nossos espaços urbanos para concluir que há muito por fazer quanto à sua humanidade.
A "diluição do coletivismo" e o "apelo exacerbado ao consumo" vieram transformar estes espaços despersonalizados, dominados pela "perda de valores e de controlo efetivo na gestão do nosso tempo". Males que poderiam ser combatidos, defende a escritora e cantautora, se à poesia e à reflexão fosse dada a atenção merecida.
O livro vai ser apresentado nesta segunda-feira, Dia Mundial da Poesia, às 17 horas, na Casa da Escrita, em Coimbra, pelo professor universitário Francisco Topa.
Este é um livro em que a reflexão assume diversas formas e preocupações. Que olhar alternativo pode oferecer a poesia na abordagem de questões sobre as quais já se ocupam, entre outros, a ciência, a filosofia ou a arquitetura?
A poesia é veículo da expressão livre sobre o mundo. E como é livre, sobejamente conotativa e pluridimensional, podemos considerar que aborda questões que nos inquietam, a partir de uma perspetiva lírica, onde a abrangência do conhecimento de várias matérias é frequente. No caso deste livro, em concreto, a voz que se deixou ouvir foi a de um sujeito lírico inquieto, impactado pela energia da urbanidade. A reflexão reside, pois, nessa demanda: umas vezes, procura a ferida, outras, a beleza. O olhar alternativo é exatamente esse: o fito de destapar a calda fervente do quotidiano e mostrá-la a borbulhar.
Muitos dos poemas ocupam-se sobre o desacerto do Mundo, bem evidente até em espaços citadinos massificados. Falta poesia às cidades?
Muitos destes textos refletem a falta de encanto que as cidades deixam transparecer, nos nossos dias. O meu conceito de cidade engloba o cultivo e a fruição de um pequeno paraíso, ao qual as massas pudessem facilmente aceder e aumentar, pela força da união. O coletivismo está a perder-se com o aumento do capitalismo vigilante, que nos subjuga ao seu poder sedutor. Por outro lado, o apelo exacerbado e contínuo ao consumo, quer de futilidades, quer de artigos que exigem créditos bancários, encaminha-nos para a perda de valores e para a perda do controle efetivo na gestão do nosso tempo: já não vivemos para criar ou construir com pensamento, mas para servirmos de moeda de troca de um tempo comprado, penhorando a nossa existência, em última análise, centrada no pagamento de direitos que devíamos dar como garantidos, se houvesse maior igualdade social. O problema de uma cidade antipoética reside no seu impacto nocivo sobre os cidadãos, que basicamente se resume a três consequências: cansaço excessivo, ausência de propósito vital, depressão e esquizofrenia coletivas.
O que falta para que a Humanidade volte "a semear amores perfeitos no campo árido do caos"?
Para que sejam semeadas amorosas flores, será necessária, na Humanidade, a consciência plena do seu propósito, não enquanto escrava de um sistema, ou usuária de um grande ordenador, mas enquanto albergadora e geradora de seres humanos pacificamente evoluídos. Falta, pois, no nosso século, civilização autêntica, baseada na paz, no respeito, na justiça, na compreensão, na partilha e não na barbárie que medra no território árido da usurpação, da guerra ou da ganância pelo poder. A nova ordem de que tanto se fala não nos coloca supostamente num plano ordenado, mas no seu contrário: não é nova, porque a ideia de massificar já está em curso, nem ordeira, por desordenar a essência sagrada da nossa condição de humanos, através da subjugação e da manipulação constante das nossas estruturas mentais, aliás, já em curso O que falta à humanidade também é a capacidade de coexistir harmonicamente com o ecossistema do planeta e consciencializar-se para a mudança de rumo, com urgência, em matérias económicas, sociais e políticas, de forma a assegurar a qualidade de vida desta e de futuras gerações. Penso que ainda há condições para essas mudanças, mas o que falta é seriedade na tomada de decisões dos líderes das organizações e da política, quase sempre condicionados por grandes grupos económicos. Não podemos, enquanto Humanidade, permanecer no infantilismo da guerrilha e da auto - proclamação, em detrimento de solucionar grandes problemas, como o da fome e da guerra. Enquanto houver graves flagelos que atingem consciência e coração, a Humanidade não singra. Se temos capacidade de evoluir tecnologicamente, que esse prodígio nos sirva apenas para alcançarmos novos conhecimentos sobre o nosso entorno, de forma a podermos melhorá-lo, e não para criar mais fronteiras entre dominadores e dominados.
Convoca para estes poemas conceitos e leis pertencentes a outras áreas do saber, como a Física. O que pode trazer para o campo poético este intercâmbio de influências?
A Física, nomeadamente a quântica, como qualquer outra matéria, pode influenciar o sujeito da enunciação. Esta perspetiva abre um caminho novo na poesia, no meu entendimento. Eu vivo num tempo que se consciencializa do conhecimento que tem sobre os átomos, por exemplo. Neste campo, há toda uma conjetura por explorar, no domínio literário. Um átomo comporta-se de maneira diferente, caso seja observado. Ou seja, as nanopartículas interagem com o eu poético, no momento da criação, na medida em que há horizonte de eventos, potencialmente modificado pelo olhar. Também literariamente se pode abordar um assunto que ganhe consistência e se concretize, à medida que é focado, enquanto tema. O texto poético consiste, outrossim, numa sucessão de frases impulsionadas pelo pensamento. Ora, este decorre da ativação de áreas cerebrais, onde se interconectam neurónios que, por sua vez, dependem das sinapses de milhares de células que geram ondas de corrente elétrica. A poesia é esta voltagem incontrolável, provavelmente alheia à nossa vontade, destinada a uma existência particular. Deste modo, entrecruza-se este micro - cosmos com a tessitura dos textos, enquadrando uma realidade que poderá ser pensada ou até sonhada. Picasso dizia que pintava as coisas, não como as via, mas como as pensava. No primeiro livro da "Arte Poética", Aristóteles (384-322 a. C.) já esclarecia os seus discípulos acerca desta matéria: a poesia não devia consistir numa imitação do real, mas na perceção de uma realidade filosoficamente refletida.
Agrada-lhe a ideia de a poesia poder captar "vozes de outras línguas/ do garboso multiverso:/ music-hall, em estreia, / podcast reverso"?
As vozes de outras línguas, vindas de outros universos, ainda se não podem escutar, no tempo em que vivemos, a não ser metaforicamente. Essa é a grande vantagem da poesia: o poder da metáfora, da imaginação, da abertura a situações aparentemente impossíveis, que nos transcendem. Com um pendor encantatório mais forte e mais ancestral, no meu entendimento, do que a religião, a poesia mergulha-nos em águas tão contraditórias, como o nosso estado anímico: tanto nos representa como indivíduos esperançosos, crentes na utopia, como nos retrata alheios ao sonho ou à mudança. Dado que a trabalha sobretudo com a palavra, a poesia possibilita, a quem a lê, a observação e a interpretação de uma linguagem plasmável: múltiplos conteúdos e prismas, onde se incluem binómios de estados e de realidades, múltiplas combinações de signos, múltiplos recursos de estilo, múltiplas interações com recursos de áudio e de vídeo, no caso da poesia digital. Camões, a este propósito, defendia, no soneto «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», que a Natureza mudava de forma positiva, através de cíclicas renovações: «O tempo cobre o chão de verde manto, / Que já coberto foi de neve fria, / E enfim converte em choro o doce canto». Ao contrário, o Homem, na sua ilusão de que seria capaz de mudança, permanecia, segundo o Poeta, muito aquém da verdadeira renovação. Se considerarmos válida a teoria que sustenta a existência em simultâneo de vários mundos, paralelos ao nosso universo, defendida, entre outros físicos, por Stephen Hawking, também podemos validar como hipotéticas as vozes oriundas dessas realidades, vozes essas que poderão consistir em variações do nosso eu: poético ou real, transcendente ou físico, binário ou quântico. No caso particular da arte poética, creio que o advento da tecnologia quântica poderá inaugurar uma nova etapa na literatura: o texto - holograma.
Escreve que "a espera é um estado messiânico". Como podemos evitar que esta espera seja sinónimo de angústia?
Não há maneira de nos libertarmos da estarmos sempre à espera de qualquer coisa, ou de alguém, na medida em que este estado já nos habita há muitos séculos. Enquanto parte da lusitana gente, transportamo-la geneticamente, havendo em D. Sebastião o mito que nos conduziu à espera trágica. Mas, se de um lado, o compasso de espera nos conduz à imobilidade, o estado de esperança alavanca-nos para a ilusão de mudança. Esperar não deve ser sinónimo de desesperar, mas tão somente o que esse verbo significa: aguardar e ter esperança. No caso do sujeito lírico deste livro, notamos que, no poema "Pardais", manifestando um sentimento de descrédito, não em relação aos pássaros, mas no que toca às ações humanas, nos incita à total liberdade de pensamento, valorizando os elementos naturais que nos transcendem pela sua beleza e pela sua aparente simplicidade. Assim, esta voz que se abriga, nos olhos volantes dos pássaros, é a mesma que volta a sobrevoar o mundo como no princípio dos tempos, a querer atingir o inatingível. Lembro-me que J.M. Cotzee escreveu, a este propósito: «É inimaginável, talvez; mas o inimaginável está lá para ser imaginado.»
O seu anterior livro, "Procura a Ática", nasceu de um sonho. E para este, qual foi a alavanca?
O livro que anteriormente escrevi, de facto, teve uma origem muito clara: um sonho marcante, durante o qual, um ancião me disse, clara e convictamente, a frase que viria a ser o título de um conjunto de textos, inspirados no mundo ático. No caso deste último, Os eletrões também devem ter alma, não me lembro de ter tido qualquer sonho que pudesse desencadear a sua escrita. No entanto, havia nele - reparei, depois, à distância - uma energia que me era alheia e que pretendia avisar-me de uma tragédia que viria a acontecer, em Agosto de 2021: o suicídio do meu filho, João Lopes Trindade, a partir da ponte metálica de Vila Real. Quando fiz a revisão definitiva do livro, escrito até 2020, para entregar à editora Exclamação, em 2021, retirei e destruí muitos textos que remetiam para quedas, pontes, passagens, porque me inquietava demasiado saber que estavam ali sinais claros do que viria a suceder, sinais esses, que eu não interpretei, na altura, devidamente. Só não fui capaz de retirar o poema que inaugurou o livro, por respeitar a forma como até mim tinha chegado. Zanguei-me muito com este livro. A certa altura, nunca mais o abri.
Há uma propensão aforística que atravessa o livro. Agrada-lhe a ideia de que os versos sejam autónomos e sobrevivam para lá do espaço do próprio poema?
A mim não me agrada, nem me desagrada a ideia da autonomia dos versos que, neste caso, vão formando os textos. Aceito como chegam até mim e como se instalam na brancura espaçosa das páginas, casa onde decidem morar, até que um vento os eleve acima da sua existência precária. Talvez seja essa a beleza da poesia: a emancipação das ideias que partem e pousam noutras paragens, para que novamente recriem universos, em ninhos que os acolham pacientemente, na sua quietude de espera transitória.
Muitos dos poemas revelam uma procura do equilíbrio. Quão importante é a escrita para si, na tentativa de alcançar esse estado?
O equilíbrio é um exercício difícil e complexo que, perpassando o processo da escrita, nos faz estruturar, quer a forma, quer o conteúdo do texto, de modo a prevalecer a justa medida de que falava Aristóteles, ou seja, a busca pela sã convivência entre extremos. Quando procedemos a reajustes determinados, como retirar ou acrescentar palavras, frases ou parágrafos inteiros, quando nos deparamos com a questão do ritmo, da sonoridade, da métrica, da coesão e da coerência, entre outros aspetos, podemos rever algumas particularidades que poderão beneficiar essa procura de contrabalanço. No meu entendimento, a tentativa de alcançar a harmonia parece-me um caminho incontornável, para quem se propõe a explorar as potencialidades das palavras. No fundo, nelas temos os sons que são, em si mesmos, propagações de ondas sonoras, justamente equilibradas e passíveis de medição. Tudo o que é perfeito - e, como tal, equilibrado, tal como a árvore, a flor, o ser humano -, obedece a uma regra, a uma lei, a uma proporção geométrica. Platão, a este propósito dizia: «Deus geometriza».
Esta é uma poesia (também) sobre espaços e a relação que estabelecemos com eles. Quais os lugares que, para si, são energizantes do ponto de vista criativo?
Para mim, esses espaços de energia estão guardados na memória. Não sou eu que a eles recorro, em pensamento, mas o contrário: são eles que me invadem com a sua presença. No momento em que escrevo, se acontece estar à mesa de um café, não considero aquele espaço sumamente inspirador, mas no caso de estar a retratar um determinado ponto da cidade, visível a partir dali, é bom para o texto a energia daquele espaço comercial onde me encontro. Mais abrangente do que este necessário ajuste, entre aquilo que se descreve e o que se vê, e sente, é o plano da energia mais intensa que os elementos naturais nos transmitem, tornando-nos mais despertos para a criação: o mar, os rios, as montanhas, a chuva, a terra, o firmamento, o Sol, entre outros, funcionam como catalisadores dos nossos cânticos internos, quando nos dispomos a permanecer em silêncio e a escutá-los, nas suas manifestações diversas.
Por que razão o diálogo entre a poesia e a arquitetura que leva por diante neste livro é ainda um exercício tão poucas vezes feito no âmbito da criação literária?
É uma questão interessante que me coloca, mas, na verdade, como me parece tão natural o diálogo entre as artes, fico sem compreender por que não é tão frequente essa comunicação, em relação ao caso específico da arquitetura. Provavelmente, muitos autores de poesia poderão pensar que o mundo da arquitetura se afasta do mundo lírico, talvez porque tenha de priorizar a construção, que é uma atividade pragmática e objetiva. Mas, não: ao contrário do que muitos possam pensar, não há uma arquitetura interessante sem poesia, e nem uma poesia interessante sem arquitetura. O género lírico atravessou períodos literários como o realismo, o surrealismo, o modernismo, o concretismo, que em parte conviveram, enquanto movimentos artísticos, com as tendências arquitetónicas das respetivas épocas. Mário Quintana, abalando a estrutura convencional do modernismo brasileiro, num poema com o título "Arquitetura funcional", escreve o seguinte: «A pena que me dão as crianças de hoje! / Vivem desencantadas como uns órfãos: / As suas casas não têm porões nem sótãos, / São umas pobres casas sem mistério. / Como pode nelas vir morar o sonho?». Fernando Pessoa, expoente máximo do modernismo português, também dialogou com a arquitetura. Nas suas «Páginas de Estética e de Teoria Literárias", escreve que há três tipos de poetas: de construção, de identidade e de profundeza. Ora, nestes excertos, escritos no século passado, verificamos, desde logo, um diálogo interessante entre as duas artes.
Há mais pontos de contacto entre a poesia e a arquitetura do que a maioria pensa?
Há pontos de contacto entre a poesia e arquitetura, desde logo no que diz respeito à projeção dos edifícios, quando é pensado o seu caráter de intervenção no espaço. O arquiteto Álvaro Siza, quando questionado acerca do projeto da Casa de Música na cidade do Porto, se a mesma seria do seu agrado, e se provocaria demasiadas ruturas, respondeu que a questão de gosto era absolutamente secundária e que o importante seria reparar na sua força intrínseca. Ora, aqui observamos um ponto de contacto entre as duas artes: quando um edifício exibe a sua força de caráter, há poesia, como podemos verificar, não só na figura de estilo presente na expressão, a personificação, mas também na dimensão subjetiva e interpretativa que constitui a busca de uma realidade que ainda não existe. Também encontro outro ponto de contacto na transformação da paisagem. Há obras e intervenções urbanísticas que mudam o perfil de uma cidade. Basta expor uma ideia como esta última, que outra figura de estilo, a metáfora, se revela. A arquitetura e a poesia tocam-se no rigor e na subjetividade complexa, já que constituem ofícios polifacetados que se debruçam sobre a criação, quer de um texto, quer de um edifício. Na contracapa do meu livro "Victorianas", escrevi o seguinte: a poesia é rigorosamente um mistério e, misteriosamente, um rigor. Podia ter escrito a mesma frase em relação à arquitetura, no meu entendimento.
O que pode, afinal, um poema contra a violência e as iniquidades do Mundo?
Essa ideia de grandeza, que nos remete para o poder da palavra, tem uma escala própria (e aqui abro um parêntesis para mais um ponto de contacto com a arquitetura). Essa ideia de que há, de facto, esperança e força nas palavras, estejam elas num poema - dito ou cantado -, ou numa oração, tem eco em mim, porque acredito no Verbo que salva. E, por isso mesmo, recebo com gratidão a fonte que em mim parece existir. Mas o que realmente importa num poema é a sua força interior e o seu caráter de mudança, independentemente de quem o tenha escrito. O poema - monumento, o poema-soco vibrante, o poema que transforma a realidade, em virtude da sua emoção pensada, serve um propósito de evolução onde não cabem, nem violência, nem iniquidades. Por outro lado, compreende-se que a tensão dramática da vida se fundamente no equilíbrio de forças contrárias. Émile Durkheim notou, a propósito, que a arte também possuía um caráter de sublimação da violência. Neste caso, um poema pode transformar a dor em arte, pela profundidade com que sensibiliza quem o lê, aproximando essoutro de um estado de empatia ou reconhecimento, salvando-o, de certa forma, do naufrágio do mal.
Para quem não teve um contacto prévio com o livro, o título "Os eletrões também devem ter alma" é, no mínimo, intrigante. A poesia deve ser também esse espaço da estranheza e do improvável?
Tal como acontece na arquitetura, penso que a poesia deve surpreender e pautar-se por exigências próprias, relacionadas com a sua particular expressão. Não é simples, antes pelo contrário: face a uma ideia central, por exemplo, é necessária uma revisitação constante e deixar permanecer apenas o necessário, sem descurar a musicalidade ou o ritmo que a poesia marca. Se a compararmos a um edifício, é necessário que não seja esquecida aquela grande janela por onde podemos ver o espetáculo do mundo, não na sua feiura, ou na sua beleza, mas na sua expressão. O impacto, como domínio da imprevisibilidade, constitui um convite a olhar pela janela como se fosse a primeira vez. O visitante dessa habitação deve apropriar-se da paisagem, no sentido de fruir da contemporaneidade do mundo revelado pelas palavras. O visitante-leitor guarda boa ou má memória de um espaço, se for surpreendido: ou pelo conforto, ou pelo desconforto. Muitas vezes aconteceu, na História da Literatura, terem sido escritos livros, pouco ou nada frequentados, onde só uma minoria pôde aceder, e abrir comodamente as amplas janelas dos edifícios, voltadas para a (in)compreensão do mundo. Penso que continuam a surpreender muito poucos poetas, como sempre, em cada século. A paisagem teatral, essa é sempre a mesma, ao contrário das sábias estações.
Da mesma forma que "os eletrões também devem ter alma", acredita que a poesia também é, em certo sentido, matéria?
Tudo é simultaneamente matéria e energia, se parte de nós. Repare que o significado de poesia, na sua origem etimológica grega, poíesis, nos revela que esta arte se destina à criação (poiein) de algo, através de uma ação (- sis) que implica, por sua vez, imaginação, conhecimento e emoção. No decorrer deste facto, e no meu entendimento, a poesia parte de plano imaterial e invisível para criar estruturas artísticas visíveis e materiais, já que através destas últimas acedemos ao invisível, ou à consequência da ideia que originou a criação de algo. De outra parte, podemos pensar que todo o pensamento criativo que se exprime na poesia se baseia num conjunto complexo de funcionalidades cerebrais, muitas vezes incontroláveis pelo ser humano. Nesse submundo, talvez um poema faça tanto sentido como uma sinapse. No mundo cósmico, o que podemos imaginar é tão ilimitado, que um poema não faz sentido, senão na mente de quem o cria. Posso também entender que, nessa dimensão que nos alberga, como miserável insignificância, possamos finalmente entender duas coisas: o nosso enorme desconhecimento e a nossa incrível capacidade de sobrevivência. A poesia manifesta essa sede, esse grito, essa coragem.
O que, em seu entender, trouxeram os desenhos de Álvaro Siza ao livro e, sobretudo, aos seus poemas?
Os desenhos de Álvaro Siza vieram debruçar-se nas palavras, tal como eu também me debrucei das janelas projetadas pelo arquiteto. Neste caso, tratou-se de um processo de complementaridade que, uma vez ou outra, os poetas e outros artistas devem experimentar. O diálogo fomenta a partilha e a compreensão que desejo ver no mundo. Num total de três, foi respeitada a posição de cada um deles no livro. Encontram-se executados a uma só cor, representando variações de uma figura elegante, dinâmica, expressiva que, na simplicidade complexa da sua plástica existência, nos acompanha na leitura dos versos.
A sua ligação à cultura não se esgota na escrita e na poesia, uma vez que também é cantautora. São facetas indissociáveis, a música e a literatura?
A poesia, na sua origem, destinava-se a ser cantada. Um poeta sempre canta, se é poeta. Mas este canto de que falo, nos dias de hoje, é a consciência de musicalidade que a poesia também precisa, como género literário: ritmo, intensidade, métrica, silêncio, pausa e outros aspetos sonoros semelhantes. Paul Verlaine dizia. «Antes de tudo, a música». Relativamente à distribuição de versos nas páginas, notamos que podem veicular momentos de pausa, como é o caso dos espaços em branco. Pressente-se, por vezes, uma pauta em cada poema, ou em cada texto. Muitos poemas descartam a métrica, centrando-se preferencialmente no ritmo, de que são exemplos a "Ode Triunfal", de Álvaro de Campos, ou os poemas rap, ditos ou cantados ritmadamente, como instrumentos de percussão. Penso, em suma, que o simbolista francês tinha razão: Verlaine conhecia a cadência e a ascensão dos versos e sabia que neles se entrecruzava uma linha melódica, acusticamente incontornável. Nem nós, nem a morte devemos separar a música da literatura.
