Marina Abramovic, a consagrada artista natural de Belgrado, apresenta até 1 janeiro uma grande retrospetiva em Londres.
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A Royal Academy of Arts (Academia Real Inglesa) situa-se em Piccadilly, bem no coração de Londres, num belíssimo e imponente edifício neoclássico e foi fundada em 1768 por Jorge III de Inglaterra. Apresenta, até 1 de janeiro de 2024, uma exposição retrospetiva de Marina Abramovic (n.1946), nascida em Belgrado (atual Sérvia), no contexto da antiga Jugoslávia.
Os seus pais eram considerados heróis da II Guerra Mundial e todo o enquadramento político da República Socialista (1945-1990) e da interminável guerra dos Balcãs tem uma influência cabal na sua pesquisa e produção artística que, após estudos de belas-artes nas academias de Belgrado e Zagreb (1965-1972), tem como objeto e assunto o corpo, a mente e os seus limites, bem como as relações com os públicos.
Não sei se terá sido pelo facto de, no dia em que visitei esta exposição, as ruas da capital britânica serem o corpo e a voz e de uma enorme manifestação pacífica pró-palestina, em que participavam judeus e islâmicos de diferentes gerações, mas o certo é que, esta exposição, terá sido uma das experiências mais transformadoras e reflexivas às quais me expus nos últimos tempos.
Ao longo de 50 anos de prática artística, Marina Abramovic reinventou o sentido da performance através dos desafios que coloca ao corpo e à mente do artista e do espectador, tornando uma disciplina emergente, no contexto das vanguardas das décadas de 1960/70, numa forma de expressão artística democrática e presente nas coleções e programações das instituições dos nossos dias.
Dir-se-ia que ela é a performance e esta magnífica exposição é exemplo disso mesmo. Não obstante a performance e a 'body art 'serem as suas formas primordiais, Marina Abramovic é uma artista multidisciplinar que explora a fotografia, o vídeo, a instalação ou a escultura, numa complexidade de obras que encontramos nesta que é a sua maior exposição de sempre no Reino Unido.
O arco temporal desta exposição situa-se entre as performances “Rhythm 0” (1974) e “The Artist is Present” (2010), nas duas primeiras salas desta exposição onde há, de uma forma geral, recurso a registos audiovisuais, recriação de cenários com objetos utilizados pela artista e mesmo repetição dos atos com recurso a outros performances, devidamente formados e escolhidos pelo MAI, Marina Abramovic Institute, fundado pela artista em 2007.
Em “Rhythm 0”, performance apresentada pela primeira vez no Studio Morra, em Nápoles, em 1974, há 72 objetos, que podem provocar prazer ou dor, colocados em cima de uma mesa e o desafio aos públicos para que os usem na artista, assumindo esta toda a responsabilidade. De forma gradual, e vencendo a aparente timidez, ao longo de seis horas, o exercício da violência vai em crescendo, fazendo-nos refletir sobre a forma, injustificada e apenas passional, como facilmente maltratamos o outro.
“The Artist is Present” foi apresentada no MoMA, em Nova Iorque, entre 7 de março e 31 de maio de 2010, com uma duração total do ato de 75 dias, em 716 horas e 30 minutos e a participação de 1545 visitantes do museu que se sentavam em frente à artista, olhando-a fixamente. Trata-se da famosa performance em que Marina Abramović e o artista alemão Ulay (1943-2020) se reencontram, depois do fim da relação amorosa e da parceria artística que os uniu, simbolicamente assinalada com a performance “The Lovers” (1988) na Grande Muralha da China. Há, inclusive, uma sala da exposição dedicada aos projetos desenvolvidos em coautoria.
A relação e participação dos públicos no ato da performance é uma das marcas desta artista e, nesta exposição, são vários os momentos em que podemos interagir com objetos outrora utilizados em performances e experienciarmos sensações, sobretudo de apelo à meditação e à consciência corporal, aproximando-nos da linha central de pesquisa da artista após a década de 1990: a espiritualidade e os papéis da mulher nos rituais coletivos de fé e transcendência.
O que se destaca das 10 salas da Royal Academy of Arts é uma história de vida totalmente engajada com a prática artística, sendo a arte um veículo para a transformação emocional e social. Com o mundo à beira do abismo vale a pena, a título de exemplo final, recuperar a mensagem da performance "Balkan Baroque" com a qual a artista participou na Bienal de Veneza de 1997. Talvez as imagens, mais fortes do que as palavras, nos ajudem a compreender as consequências do caminho da guerra.