"Jangada", novo álbum do pianista em trio, é um elogio da cumplicidade.
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A música que está a chegar aos discos é cada vez mais música nascida nas condições inauditas dos confinamentos pandémicos. Foi nessa janela temporal que ganharam forma as composições de "Jangada", terceiro álbum a juntar o piano de Mário Laginha ao contrabaixo de Bernardo Moreira e à bateria de Alexandre Frazão. Mundo parado, o trio desenvolveu um repertório que vive de uma trama em que, regra geral, os instrumentos não se adiantam num protagonismo explícito. São quase 70 minutos de cumplicidade de olhos fechados.
O disco funciona a várias velocidades e em diversos tons. É explosivo e veloz em "Disquiet" e "Kingfisher". Tem um swing imparável em "Seven", com um rendilhado rítmico fluído e minucioso. Entrega uma pérola noturna, "Chorale nº 2", atravessada por aragem erudita. Dispensa a consistência do tempo em "Speak", com pinceladas leves e jubilosas das teclas e a sensação de se estar a ouvir três monólogos em simultâneo. Revela um corpo com a geometria precisa de uma canção com "Ribeira da Barca", melancólica e usando uma distribuição mais linear dos papéis dos músicos. E agrega um sortido destas características para "Short shore": lírica, luminosa, dinâmica, revolta.
A peça central de "Jangada" - em dimensão, ambição, alinhamento - é "The stone raft (a jangada de pedra): Lowlands, raft, crossroads, south". Sob a inspiração de José Saramago, materializam-se 17 minutos que começam com o foco e a intensidade melódicas de uma canção. Os cinco minutos iniciais são levados por um ritmo profundo, grave e expectante. Esta construção é depois trocada por um desmantelamento melódico e estrutural saído dos dedos de Mário Laginha a solo; uma sucessão de convulsões, repetições, arrebatamentos, meio romântico, meio abstrato, a que os companheiros acabam por se juntar num idêntico registo convulsivo, violento. Segue-se uma travessia sombria, de novo o ritmo profundo, aos círculos, iniciando um lento regresso ao projeto de canção inicial. Uma composição marcante num álbum solidário, um manifesto sobre as virtudes de dar tempo ao tempo.
Jangada
Mário Laginha
Edition Records