“As feias que me desculpem, mas beleza é fundamental”: a frase de Vinicius de Moraes poderia aplicar-se às peças que passaram pelo Festival Internacional de Marionetas do Porto, que encerrou este domingo. Após dez dias, o resultado "é muito positivo", diz a direção.
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“O balanço que fazemos é muito bom. Primeiro pela forma como o público reagiu de forma muito positiva e com grande entusiasmo. Também de forma numerosa com salas esgotadas e outras perto de esgotar. Houve também uma aposta muito acertada de apresentar espetáculos em estreia absoluta. Nem sempre podemos mostrar apenas os valores seguros”, disse ao JN Igor Gandra, diretor artístico do Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP).
Após dez dias de espetáculos diários no Porto e em Matosinhos, a resposta pública começa também a ser internacional. "A projeção que o festival vai tendo internacionalmente é muito importante. Ainda hoje, dois elementos da nossa equipa seguiram para um laboratório em Cabo Verde. Também percebemos que o FIMP recebeu muito público da Galiza e da Catalunha, muitos viajaram para fazer cá as masterclasses, o que confirma essa projeção".
"Estamos muito felizes com a consistência geral do programa apresentado", continua Igor Gandra, "não está, evidentemente, tudo no mesmo plano, mas em termos de logística e de equipa estamos muito felizes com o trabalho desenvolvido e apresentado", disse o responsável.
Cerrar os dentes e chorar
"E vocês ficam aí sem fazer nada?", pergunta-nos o ator Sergi Torrecilla, aqui em cena como o professor Antoni Benaiges, depois de ter chegado à escola rural de Bañuelos de Bureba, em Burgos, na peça teatral "El mar: Vision de unos niños que no lo han visto nunca", do espanhol Xavier Bobés.
Não, nós cerramos os dentes e choramos. Porque percebemos que depois de torturarem o professor, de lhe arrancarem os dentes e as unhas, de o terem envolvido numa bandeira vermelha e de o arrastarem pelo chão, e depois de sabermos que a sua mãe perdeu, para sempre, o seu "filho de verão", ele deu um pedaço da sua eternidade aos seus alunos.
"El mar: Vision de unos niños que no lo han visto nunca" foi uma das peças mais comoventes a passar pelo FIMP 2023.
Também sabemos que a história fez com que este profesor catalão, assassinado em 1936 às mãos dos franquistas, nunca pudesse cumprir a promessa de mostrar o mar aos meninos que trabalhavam de sol a sol, dando-lhes apenas uma possibilidade de mostrar um mundo diferente impresso nas páginas dos jornais da escola.
O corpo do professor Benaiges foi encontrado recentemente numa das muitas valas comuns existentes em Espanha, onde estavam outros 100 corpos... Foi dos poucos resgatados - o do escritor Federico García Lorca, por exemplo, ainda continua por encontrar...
Um nó permanente na garganta
Há três obras teatrais sobre a história de Espanha que deveriam ser obrigatórias. A primeira: "Azaña, una pasíon española", um monólogo sobre Manuel Azaña, presidente da (breve) república espanhola, protagonizada pelo colossal José Luis Gómez, numa produção do mítico Teatro da Abadia, que esteve em cena no Porto, no Teatro Nacional São João, no início deste século.
A segunda: "Habrás de ir a la guerra que empieza hoy", de Pablo Fidalgo Lareo, que subiu à cena no Teatro Rivoli, num monólogo de Cláudio da Silva.
E, por último, esta "El mar: Vision de unos niños que no lo han visto nunca", de Xavier Bobés, apresentada pela última vez este domingo, no FIMP, no Teatro Carlos Alberto. Três monólogos partindo de uma janela particular para a história geral.
Xavier Bobés tem uma capacidade intrínseca de nos deixar um nó eterno na garganta e a qualidade de nos comover pela beleza e pelo rigor cénico, pela elegante coreografia de objetos e, sobretudo, pela forma como nos direciona o olhar e nos deixa o coração aprisionado para sempre. A interpretação do ator Alberto Conejero é lapidar, desde a movimentação à forma como altera o catalão com o castelhano, deixando ali, na tábuas do palco, toda a sua alma.
Santo Aleixo: anacronismos hilariantes
Depois do choque emocional da peça de Xavier Bobés, nada melhor para exorcizar o público do que uma paulada dos Bonecos de Santo Aleixo.
A secular tradição teatral portuguesa de animação de marionetas passou pelo Teatro Helena Sá e Costa no encerramento das apresentações em sala do FIMP e não deixou ninguém incólume. O "Auto da Criação do Mundo", pela companhia Cendrev, com o endiabarado Mestre (de cerimónias) Salas, tem cantares e dançares para pôr Deus e o Demónio em sentido.
Os Bonecos de Santo Aleixo são uma tradição portuguesa do Alto Alentejo e há registos da sua existência já no século XVIII - e já na altura as referências eram à sua queima depois de terem sido apreendidos. Talvez porque a sua incontinência verbal e social possa ser capaz de envergonhar qualquer um.
O seu primitivismo é radicalmente moderno: as marionetas atuam num retábulo de madeira com uma rede de cordéis, são iluminados com candeias de azeite e os cenários são pintados em cartão. Todo o acompanhamento musical é feito por uma guitarra portuguesa e com imensos cantares e danças de escárnio. Para dançar, já se sabe, "há que chamar a prima com quem se ajeita melhor". Um anacronismo hilariante nestes tempos do politicamente correto.