O que sucede depois de vermos as peças de arte do super-realista italiano Maurizio Cattelan é um mistério coronário. A sua exposição antológica instala-se em Serralves, no Porto, até janeiro de 2026, como se fosse uma ocupação ilegal.
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O homem está deitado no chão à entrada da capela. Prostrado de lado, virado para a parede, braços cruzados, esconde a cara. Está bem vestido, casaco, jeans, ténis, penteado. Espremido, cobre-se numa manta, um plástico por cima. Está sujo. Chama-se "Jorge". E está morto.
Na capela, uma criança reza ajoelhada, virada para o altar. O altar está abandonado. Dos sacros parapeitos, imóveis e taxidermizadas, dezenas de pombas olham sem parar. Parecem câmaras retorcidas de videovigilância. Contorna-se lentamente a criança e a criança tem a cara envelhecida de Hitler. A capela ecoa em reverberação coronária.
"Sussurro", a exposição antológica do italiano Maurizio Cattelan (1960) na Casa de Serralves, no Porto, que, mais do que uma instalação, é uma ocupação de arte alienígena - parece um murmúrio manso e benevolente, mas é uma manada de tufões. É terrífica. E é um violento acontecimento emocional.
Super-realistas e surreais, as peças de Cattelan - o cavalo de tamanho real pendurado como um lustre na sala; a cabeça da enorme avestruz a perfurar o chão de taco envernizado; o elefante coberto com um capuz do Ku Klux Klan; a mínima banana fresca colada com um adesivo na imensidade vazia da sala; o Papa João Paulo II abatido por um meteoro; o enforcado a segurar ainda o ramo romântico de flores; o esquilo que se suicidou na mesa familiar da cozinha; o espelho dourado cravados de balas que nos devolve a imagem da nossa deformidade social; os nove corpos mortos cobertos por lençóis de mármore; algumas peças são mastodônticas em escala, outras são propositadamente anãs; todas parecem cenas de um crime em investigação - são encenações de teatro de um ato só, sainetes, coisas bufas entre a opereta perplexa e a canção cómica repentina dos assuntos populares e varam-nos como um vento tempestuoso e absurdo que corre cheio de fúria e medo em direção a todos os rumos, incluindo o riso.
Maurizio Cattelan provoca-nos, evidentemente, problemas valvulares. Mas a sua arte - uma monstruosa osmose entre Hieronymus Bosch, Andy Warhol, Lucio Fontana, Marcel Duchamp, Walt Disney, Banksy e Joseph Beuys - irriga-nos o músculo cerebral com oxigénio, provocações e nutrientes mais que suficientes para não sofrermos uma isquemia coronal cultural.
Maurizio Cattelan - "Sussurro"
Casa de Serralves, Porto
Patente até: 11 janeiro de 2026