Um dos mais aclamados nomes do cinema francês atual, Melvil Poupaud começou a carreira em Portugal, num filme do realizador chileno Raul Ruiz, alvo de uma retrospetiva na Cinemateca que tem início esta quinta-feira.
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Hoje uma referência do cinema francês, Melvil Poupaud começou a carreira apenas com 10 anos num filme de Raul Ruiz filmado em Portugal. E outros se seguiram com o chileno, exilado em França depois do golpe de Pinochet, onde conheceu Paulo Branco, que então começava a produzir filmes. Melvil Poupaud recebeu há dias o prémio da Unifrance, entidade que gere a promoção do cinema francês no exterior e a Cinemateca organiza a maior retrospetiva de sempre da obra de Ruiz. Ocasião para uma conversa com o ator que vimos recentemente em “Golpe de Sorte”, o filme de Woody Allen rodado em Paris.
O que representa este prémio para si?
Não ligo muito a prémios. Nem vou aos Césars. Mas como é a Unifrance, fiquei satisfeito, porque é uma entidade que ao longo dos anos me possibilitou viajar pelo mundo inteiro a promover o meu trabalho, a encontrar-me com o público e com a imprensa. Já organizaram várias retrospetivas dos meus filmes. Fazem muito pelo cinema francês. É uma forma de falar da França e da sua cultura. Felizmente que fazemos muitos e bons filmes. É um produto que se exporta bem, o cinema francês.
Parece que não, mas já tem 40 anos de carreira…
No outro dia no café um homem estava a queixar-se que há 40 anos que trabalhava, já estava farto e não via o dia da reforma. Eu trabalho há 40 anos, mas só tenho 50. Eu já trabalhava aos 10 anos. Bom, ganhava algum dinheiro por fora, com o Paulo Branco. Era outro tipo de trabalho. Estou muito contente com o que fiz, fiz bons filmes, trabalhei com bons realizadores, mas ainda tenho vontade de continuar.
O que espera para o futuro?
Se conseguir trabalhar mais 20 ou 30 anos, vai ser um percurso considerável. Sem chegar muito alto, porque nunca fui uma mega-estrela, mas continuo a fazer bem o meu trabalho e a receber propostas de personagens interessantes da parte de realizadores de que gosto.
Como é que começou a carreira aos 10 anos e logo em Portugal?
A minha mãe era publicista em Paris, começou com a Marguerite Duras. Foi por aí que conheceu o Paulo Branco, que tinha uma sala em Paris. Fez bastantes filmes com o Paulo Branco como produtor e ela como publicista. Um deles era realizado pelo Raul Ruiz. Acompanhei-a na conferência de imprensa, o Raul viu-me, estava a preparar um filme com a personagem de um rapaz e levou-me para Portugal para fazer o filme.
Como é que viveu essa experiência?
Só há alguns dias, curiosamente, é que descobriu que Malo, o nome da minha personagem, queria dizer “o mau”, em espanhol. Sempre pensei que Malo era o nome do rapaz. Logo, sou eu que represento o “mau” no filme. Nem a minha mãe me disse. Ela gostava muito do Raul Ruiz, que era uma pessoa muito simpática. Eu representava o diabo em pessoa, cortava gargantas, disparava a torto e a direito. Para mim foi mágico.
Como é que foi a relação com o Raul Ruiz e com o Paulo Branco?
O Raul e o Paulo foram geniais. A equipa portuguesa era uma simpatia, tomavam conta de mim. A rodagem foi de loucos, conduziam a 100 à hora, havia álcool, festas, mas nunca me aconteceu nada. Quando voltei à escola percebi que tinha passado umas férias únicas. E agora a escola era um aborrecimento. E claro que sonhei que ia ser uma grande estrela à Hollywood, com uma casa com uma grande piscina. Era assim que imaginava a vida de um ator.
Depois filmou várias vezes com o Raul Ruiz.
Não há um dia em que não pense no Raul Ruiz. Era um grande realizador. Sabia tudo sobre o cinema, sobre a técnica. Mesmo a tecnologia, os efeitos especiais, tudo o que podia ser feito. Era também um homem extremamente culto. Sabia muito de literatura, de matemática, de ciências. De alquimia e do talmude. Falava umas doze línguas. Era uma personagem da Renascença, uma espécie de Leonardo Da Vinci cineasta. E era uma pessoa muito divertida.
O que aprendeu com ele?
Quando eu era criança, para mim era o Raul. Agora, sobretudo depois da sua morte, percebo que era um artista imenso. Tenho uma coleção de livros sobre ele, em todas as línguas. De vez em quando descubro outros filmes dele e percebo como fazia filmes completamente loucos. Para mim, não é um realizador de cinema, é um artista. E genial.
O Melvil tem uma qualidade que não é muito comum nos atores. É tão convincente em papéis simpáticos como em papéis de vilão. Qual é o segredo?
Talvez venha mesmo do meu primeiro filme com o Raul Ruiz, onde interpretava o mal em pessoa e tinha o ar de um rapazinho simpático. Mas gosto de flirtar com os limites e de mudar de registo. Acho que é esse o trabalho de um ator. Quando era adolescente, parecia destinado a pepéis de jovem romântico. Mas não quis que fosse só esse o meu trabalho. Fiz tudo para fazer coisas diferentes, gosto de ser livre de escolher.
Também voltou a fazer filmes no estrangeiro.
Fiz alguns filmes mais experimentais na Ásia central e na China. Também fiz um filme no Líbano com a Danielle Arbid. Foi sobretudo para sair do meio parisiense, para me transformar, para ir um pouco à aventura.
Na sua filmografia há Rohmer, Ozon, Polanski, Woody Allen…
Tenho tido sorte. E penso que tenho algumas qualidades que os realizadores gostam. Sou profissional, sou fiável. Não levanto ondas. E nunca tive problemas com o dinheiro. Conheço muitos atores que têm muito dinheiro, têm um modo de vida luxuoso e depois têm de aceitar filmes menos bons mas que lhes dão os meios para pagar a casa de campo ou o grande carro. Eu vivo com menos dinheiro e sou capaz de não aceitar um filme se não me interessa.
Num momento da sua vida chegou a tentar a realização.
Comecei a fazer uns filmes quando era miúdo, com uma câmara que comprei com o dinheiro do Raul Ruiz. Depois chegou o digital, com câmaras mais pequenas, que adoro e fiz alguns filmes. Mas depois, com os telemóveis, toda a gente faz os seus filmes, deixou de ser muito original. Passou a ser quase vulgar, quando antes era uma prática muito particular. Deixei de me divertir a fazer esses filmes.
Há alguma personagem que nunca tenha interpretado e que gostasse de fazer?
Agora estou a fazer de vagabundo. Nunca tinha feito. Uma personagem completamente à deriva. No oposto, acabo de fazer de Presidente da República, numa série de televisão. Há muitos papéis que me interessam, como polícia. Nunca fiz de polícia, talvez este ano o possa fazer, um pouco como nos filmes do Jean-Pierre Melville.
