Inadelso Cossa apresentou na secção Forum do festival berlinense “As Noites Ainda Cheiram a Pólvora”.
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Uma das primeiras presenças portuguesas no Festival de Berlim, edição 74, chegou através de uma coprodução da Duplacena com Moçambique. Por detrás do título ao mesmo tempo poético e trágico de “As Noites Ainda Cheiram a Pólvora” esconde-se uma evocação, necessária, do período da guerra civil no país, entre as forças da Frelimo e da Renamo.
O filme segue-se, na filmografia de Inadelso Cossa, a “Uma Memória em Três Atos”, sobre os tempos da guerra colonial. Só que, ao contrário desse período, em que o realizador ainda não era nascido, foi já na infância que viveu a guerra civil. Não havendo muita documentação sobre essa época, o realizador vai direito às fontes, reclamando a memória da avó, para nos contar, e a ele e a toda a sua geração também, o que se passou nesses anos negros em que moçambicanos lutavam contra os seus irmãos.
Na realidade, a avó do realizadro transmitia-lhe, a ele e a todas as crianças da família, uma visão idealizada da guerra. Ao contrário de tiroteios e explosões, era apenas fogo-de-artifício a que as crianças assistiam, antes de serem levadas para os locais de acolhimento noturno no mato, fora da aldeia, sempre em perigo de ataque.
Inadelso Cossa consegue assim um relato vivo, pungente e realista de um período que convém não esquecer, para que não se repita, mas também sem ele próprio esquecer que está a fazer um filme, no caso um documentário, a que se atira com talento e sensibilidade. É um filme da noite, como eram à noite as histórias que se contavam à volta da fogueira, antes desses momentos se tornarem perigosos. Um filme de noite, mas também de luz, das chamas, da Lua, da voz de quem nos conta estas histórias de guerra, de sobrevivência, de esperança na vida.
Na competição, e para não saírmos do continente africano, Mati Diop, francesa de origem senegalesa, opta também pelo documentário, depois de “Atlantique”, que chegou a levar à competição de Cannes. Em “Dahomey”, acompanha o percurso de 26 obras de arte roubadas pelo regime colonial francês, no seu regresso ao país que agora se chama Benim.
Além da forma meticulosa como filme essa viagem, Mati Diop concentra grande parte da sua atenção na discussão entre os jovens do país africano, sobre a necessidade de recuperar esse património, sem o qual não conseguirá resgatar toda a sua identidade. Sublinhando no entanto que se trata ainda de uma minúscula porção de todas as obras de arte retiradas de África pelos colonizadores.
Um filme que nos interessa anos portugueses? Claro que sim, pela discussão que poderá originar sobre o mesmo processo de entrega de património cultural material a quem tem o direito natural de o usufruir e de o tratar, de forma histórica, pedagógica ou museológica, como melhor o entenderem.
Entretanto, Bruno Dumont continua perdido, à procura de um sentido para o seu cinema. O mesmo realizador que fez outrora filmes de culto como “A Vida de Jesus”, “Fora, Satanás” ou “Camille Claudel 1915”, dedica-se agora à ficção científica com “L’Empire”, jogando num tabuleiro que diríamos ser mais propício a Quentin Dupieux.
Seria aliás nesse realizador que pensaríamos ao entrar na sala se nada soubéssemos de “L’Empire”, pela aposta no absurdo da situação de base do filme: numa pequena localidade piscatória do norte de França, o nascimento de um bebé irá desencadear uma luta entre o Bem e o Mal, personificados em extraterrestres transmutados em humanos e em naves espaciais que mais parecem catedrais gigantescas. Por muito que se respeite o cinema de Bruno Dumont, o humor continua a não ser o seu forte.
Do que nos foi dado a ver em outras seções, o sexo, versão queer, tem também dominado as noites de Berlim, uma cidade historicamente conhecida como estando na vanguarda da libertação sexual. Não admira pois que tenham feito furor as projeções de “Love Lies Bleeding” e “The Visitor.
No primeiro, a argumentista e realizadora Rose Glass elabora, em tons de filme negro, uma história de amor entre uma jovem que trabalha num ginásio de uma localidade do interior do Novo México e outra jovem que por lá passa a caminho de uma competição de culturismo em Las Vegas. Kristen Stewart e Katy O’Brian protagonizam algumas cenas de sexo, embora seja o sangue o que começa a sobressair nesta história de ciúme, possessão e relações familiares mal resolvidas, num crescendo que culmina muito para lá do que se poderia imaginar.
Quanto a “The Visitor”, é o último trabalho do canadiano de Bruce La Bruce, mais conhecido pelo seu cinema declaradamente porno gay, aqui em homenagem a Pasolini e ao seu “Teorema”, através da história de um refugiado negro saído literalmente de uma mala nas margens do Tamisa, que se vai imiscuir numa família da burguesia, tendo sexo – completamente explícito – com pai, mão, filho e filha. Ou de como o porno pode ser político e como urge descobrir o cinema deste verdadeiro autor, fenómeno de culto por esse mundo fora.