Primeiros concertos da 17.ª edição do Meo Marés Vivas foram em português. Jessica Pina abriu palco Moche e Hybrid Theory o palco Meo.
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Primeiro dia, primeiro concerto. O sol batia sobre o recinto quando cinco almas curiosas se sentaram à frente do palco Moche. Cinco. Número simbólico, número de dedos numa mão — talvez a mesma que Jessica Pina usaria mais tarde para segurar o trompete com a precisão de quem sabe bem o que está a fazer. Mas ainda era cedo. Cinco corajosos, atentos, expectantes. Não sabiam, mas tinham sido convocados para um momento maior.
É assim que começam as boas histórias: com o subestimar da coisa. Quem olhava de fora via uma artista “a começar”, mas Jessica Pina já vinha de muito longe. Jazz no corpo, groove na alma, trompete nos pulmões e uma voz que parece ter sido filtrada por areia fina e pôr-do-sol. Tocou para cinco, mas cantou como se estivesse num Coliseu. E como em todas as histórias bem contadas, o público foi crescendo — devagarinho, como se os passos fossem puxados pela música — e quando demos por nós, éramos muitos. E todos de olhos cravados naquele formato híbrido e muito bem oleado: bateria, teclas, trompete, voz. Jazz? Soul? Funk? Um bocadinho de tudo, sem pedir licença a nenhum.
Eletricidade crua para corações partidos
Jessica Pina não está aqui para seguir caminhos batidos. Está para os criar. Depois do convite de Madonna para a digressão MADAME X (sim, essa mesma Madonna), lançou “Vento Novo”, EP com assinatura visual de João Pedro Moreira, nome que facilmente encontramos ao lado de Dino D’Santiago ou Branko. Depois disso, rodou o país de lés a lés e pisou palcos em Espanha, na Europa com Mikky Blanco, e até na África do Sul. Um percurso ímpar, sem pressas, com o ouvido afinado para o que realmente interessa.
E foi nessa calma certa, nesse balanço entre o brio e a intuição, que nos levou de “Romeu” — um amor não correspondido, daqueles que ainda doem quando se fala neles — até à experiência final chamada “Primeiro Esquerdo”. Um nome de música que parece morada, mas que mais parece universo. Um groove inacreditável e um talento evidente.
Entre os aplausos, alguém gritou “aquela do Miles Davis e Michael Jackson”. E por instantes, estávamos a assistir ao futuro da música portuguesa, mas também a uma viagem no tempo. “Why? Why?” respondeu-lhe a multidão. E a resposta estava ali, no palco, sem precisar de ser dita. Porque sim. Porque é preciso gente assim, que nos tire da planície e nos devolva a montanha-russa.
No palco ao lado o Meo, mais tarde, a vibração mudou de tom. Entrou a eletricidade crua dos Hybrid Theory. Os fãs de Linkin Park não vieram para ouvir — vieram para gritar, viver, exorcizar. Centenas de bandeiras, braços no ar, corações a bater pela memória de Chester Bennington. “For what I’ve done, I start again.” Não se cantam estas palavras sem carregar um pedaço da própria dor.
A intensidade foi tanta que até o céu pareceu querer chorar. “Given Up” fez estremecer o chão, e “Points of Authority” levou-nos direitinhos de volta à adolescência, quando gritávamos contra pais, professores, amores falhados, tudo e nada. Quando chegou “Numb”, não houve garganta em silêncio. Foi um daqueles momentos de comunhão crua, em que a música faz de abrigo e confissão coletiva.
Joana Santos, de Vila Nova de Gaia, gritava ao JN: “estas músicas ajudaram-me a superar o divórcio”. Os filhos, ao lado, sorriam com aquele ar meio envergonhado de quem sabe que a mãe está a viver um momento bonito. Talvez tenham chorado juntos mais tarde. Talvez tenham cantado todos no carro, à volta da mesa ou na memória. Quem sabe?
Entre Jessica e Chester, entre trompete e trovões, este foi um dia de primeiros passos e de regressos. De cinco pessoas que se tornaram muitas, e de muitas que, mesmo aos gritos, estão aqui para se curar, para sentir, para recordar.
A música, afinal, serve para isto: para nos lembrar que somos ondas a encontrar outras ondas. Que nos cruzamos, nos chocamos, e seguimos. Mais leves e maus vivos.