Histórica artista norte-americana Meredith Monk esgota Auditório de Serralves na primeira de duas récitas exclusivas no Porto. Este sábado voltará a desafiar em palco todas as convenções do canto.
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Sons guturais, gritos, murmúrios, gemidos, falsettos – e assobios. Tudo o que a voz humana consegue produzir. Assim se exprime em palco Meredith Monk, uma das pioneiras da “técnica vocal estendida”, figura de proa do vanguardismo de Nova Iorque desde os anos 1960, cantora, performer, compositora e cineasta.
A renascentista esgotou a primeira de duas apresentações únicas no Auditório de Serralves, no Porto, na sexta-feira, repetindo a dose este sábado à noite. Os bilhetes estão, há muito, esgotados.
Secundada pelo percussionista John Hollenbeck, cúmplice desde o álbum “Mercy” (2002), o concerto integrou-se na 60.ª temporada de espetáculos de Monk, que revisitou, com novos arranjos, peças históricas de “Songs from the hill” (1975/76), “Dolmem music” (1981) ou “Book of days” (1985), além de trabalhos mais recentes, como “Simple sorrow”, que remete para “a experiência extrema da pandemia, o isolamento, a solidão”.
Na introdução a um dos temas, que nasceu da contemplação do deserto no Novo México, a cantora de 82 anos disse que não procurava imitar a natureza, mas sim revelar a magia daquele lugar. A influência do xamanismo e do budismo é assumida por Monk, que se aproxima do registo de cânticos religiosos e orações, emitindo sons circulares e repetitivos que produzem um efeito hipnótico.
As palavras são a ação, diz Monk
Há poucas palavras nas suas peças; a prosódia é criada por onomatopeias e outras sonoridades geradas pela voz. Monk faz no canto algo semelhante ao que Gertrude Stein faz na literatura: retira-lhe o logocentrismo; as palavras já não estão ao serviço de uma ação – são elas próprias a ação. Não são veículos de uma narrativa, de uma ideia, constituem-se como parte de um labirinto da linguagem. Contemplamos sem procurar um sentido. Esperamos a magia.
Apesar de haver temas associados a cada peça. “Madwoman’s vision” relaciona-se com os anos mais mortíferos da Sida e a ideia de ostracização dos infetados. “Dispelling the darkness of ignorance”, diz Monk, refere-se à principal causa dos medos, da criação de inimigos e da violência – a ignorância.
Explorando as possibilidades performativas da voz, Monk constrói paisagens e ambientes, habilmente apoiadas pela ação de Hollenbeck, que utiliza os seus instrumentos – bateria, berimbau, xilofone – também de modo heterodoxo e cubista, raspando superfícies e procurando novos sons, sempre em diálogo com a voz da cantora, que transita fluidamente entre o registo operático e o iodelei.
Foi um contacto breve com uma figura histórica, mas um contacto intenso.