Recentemente distinguido com o Prémio PEN/Nabokov, Mia Couto encerrou festival Literatura em Viagem.
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Apontado cada vez com mais insistência como o próximo Prémio Nobel da Literatura oriundo do continente africano, Mia Couto prefere continuar a deixar o ruído à porta. Mesmo quando é distinguido com um prémio tão seleto como o PEN/Nabokov, como aconteceu há escassas semanas, a primeira condição que considera necessária para escrever continua a ser a mesma de sempre: estar num sítio consigo próprio.
“A pior coisa do Mundo são os gajos porreiros, que nos interrompem quando estamos a escrever. Não tenho resistência nenhuma para eles. Com os chatos é mais fácil, transformo-os em personagens”, graceja.
No pequeno caderno negro que o acompanha para todo o lado, escreve a toda a hora notas e pensamentos soltos com uma fúria tal que admite por vezes ter dificuldade em decifrar a própria letra. Mas são as vozes das personagens na sua cabeça que ditam, em muitos casos, o que vai escrever a seguir. “Acho que sou o psiquiatra de mim próprio”, desabafa, sem pejo em considerar “obsessiva” a sua relação com a escrita.
“Biólogo sem uma crença total na Biologia”, admite, porém, que a existência de outra atividade profissional – como, no passado, já o tinham sido o jornalismo e a docência – foi fundamental. “Se fosse só escritor, já teria enlouquecido”, diz. Por fazer da escrita de cada novo livro “um confronto com o que não sei”, confessa nunca ter experimentado um bloqueio criativo: “Os escritores gostam de dar a ideia de que são visitados por uma musa, mas este é um trabalho como qualquer outro. Temos é de estar disponíveis para uma escuta íntima, porque vem tudo do silêncio”.
“As zonas de mistério”
De regresso ao Norte, região dos seus pais, para participar na cerimónia de encerramento do festival Literatura em Viagem, em Matosinhos, o autor de “O mapeador de ausências” reconhece ter ainda presentes em si os relatos que povoavam a sua infância. Essas histórias, com uma força tal que a dada altura a sua própria veracidade se tornou irrelevante, tiveram um impacto que se prolongaria pelos anos fora. Com os restantes familiares a milhares de quilómetros, o pai e a mãe “decidiram que as histórias iam ser a nossa casa, que íamos viver em histórias”.
Mais até do que as leituras de Graciliano Ramos, Sophia de Mello Breyner ou Fernando Pessoa (“com ele aprendi que dentro de nós está uma multidão”), foi o contacto com as culturas locais a moldar uma visão do Mundo assente na diversidade, por demais evidente nos 28 povos que formam a nação moçambicana, cada qual com costumes e idiomas próprios.
“Em África, há a sensação de que uma parte do Mundo é comandada por forças invisíveis. A covid mostrou-nos que esta é uma verdade profunda. Os vírus, as bactérias e fungos, que associamos apenas a doenças, são os maestros da vida”, reforça.
A noção de que há “zonas de mistério que não controlamos”, tão presente em África, é um ensinamento para o próprio escritor, que, em virtude da formação científica, reconhece ficar ansioso perante o desconhecido. O estado sensível do Mundo advém dessa incerteza, acredita: “Estamos todos com medo e a reagir de forma intensa porque precisamos de algo que faça sentido. É mais fácil ter um discurso simplista do que perceber que tudo é complexo”.