No corre-corre daquela artéria borbulhante da Catalunha era apenas mais um. Mais um entre as dezenas de freaks exibicionistas, artistas frustrados, indigentes criativos, desempregados congénitos - enfim, chamem-lhes o que quiserem - que ocupam os passeios das Ramblas de Barcelona.
Corpo do artigo
Primeiro nome: Michael. Apelido: Jackson. Não o verdadeiro, antes uma cópia "à la loja dos 300" que com o original apenas partilhava o tom de pele (o original, não o caucasiano), a cintura estreita e a trancinha efeminada que rima na perfeição com os gritinhos ("hi-hi…") que entrecortam algum do repertório do rei da pop. Michael montou o estaminé (um chapéu preto virado ao contrário, como convém a quem cultiva o gosto pelo tilintar das moedas), encorajou o rádio a pilhas a dar vida a "Billie Jean" e começou a passear as mãos pelo frio da manhã. Os espectadores, por momentos demitidos da missão de transeuntes, formaram uma meia lua de curiosidade. E eu com eles.
"She was more like a beauty queen from a movie scene …" . E nada. Chegámos ao refrão. "People always told me be carefull of what you do…" E o Michael continuava apenas a desenhar círculos com os braços. Nada de moonwalk, nada de interjeições estridentes, nada de mão entre as virilhas e pontapé em frente. A pequena multidão inquietava-se. Afinal, estaria ele a imitar Michael Jackson ou apenas o técnico de som do rei da pop?
Até que no passeio da fama desagua uma torrente de italianos, generosos no barulho e na gorjeta. Alto! Afinal sempre havia um Jackson naquele Michael. As meias brancas arrastam-se delicadamente até ao chapéu e o homem atira o olhar na direcção do ganha-pão. Conta o pilim (e no rádio: "Billie Jean is not my lover…"), abana a cabeça e volta a devolver as moedas ao soalho. Sempre com uma irritante graciosidade (por esta altura, até o Ronaldinho Gaúcho que dava toques em cima de uma cadeira de plástico branca, do outro lado do passeio, denotava já algum desconforto, a ponto de deixar cair a bola cada vez mais prematuramente).
Começaram, então, a ouvir-se os primeiros assobios, a que se seguiram alguns impropérios em italiano, a que se seguiu a debandada. Fugiram todos (e alguns fugiram com o dinheiro) e eu fiquei ali a olhar o Michael, imperturbável, a rebobinar o "Billie Jean", a voltar a estender o chapéu, a dizer aos transeuntes e ao Mundo que uma grande estrela planetária não se sujeita a critérios avulsos de avaliação. Que um astro é-o sempre, em todas as circunstâncias, mesmo que apenas por mais de cinco euros a dança. E aí pensei: excêntrico, como o original.