Michel Hazanavicius realiza a animação “A Mais Preciosa Mercadoria”, já nos cinemas.
Corpo do artigo
Já ganhou um Oscar, pela homenagem ao cinema mudo, “O Artista”, realizou comédias populares e paródias ao filme de terror. Agora, Michel Hazanavicius realiza o filme de animação “A Mais Preciosa Mercadoria”, sobre um casal de lenhadores que, durante a Segunda Guerra Mundial, adota um bebé caído de um comboio com destino tenebroso.
De onde vem o seu interesse pela animação?
Foi este filme que só podia ser feito em animação. É em animação porque o filme o pedia, não porque tivesse um qualquer desejo de o fazer. Quando me enviaram o livro para eu o ler já se estava a pensar fazer um filme de animação. Achei esta história tão forte, tão bela, tão atual, que disse que sim. Então, tive de fazer o filme em animação.
A animação é também uma forma de dar resposta à questão de como falar da Shoah sem repetir o que já foi dito?
Eu segui o livro, que tem um dispositivo muito particular. O livro celebra a vida, o seu tema é o amor e a justiça. O facto do livro e do filme terem a forma de conto faz com que se torne uma história universal. Que não pertence aos judeus, nem aos alemães nem aos polacos. Pertence a toda a Humanidade. Fala-nos da alma humana.
Como em todos os contos, há os bons e os maus…
Potencialmente, somos todos carrascos, somos todos vítimas. Mas o que a história nos diz é que somos todos potencialmente justos. Podemos escolher ser justos. Estamos a dar cabo do ambiente, o mundo à nossa volta está a desagregar-se, mas temos ainda o poder de sermos boas pessoas. E isto desvia logo o tema do filme, que não é a Shoah. O tema do filme é o ser humano. A melhor versão de nós próprios e a pior versão de nós próprios.
O livro, que o filme segue, escolheu uma certa forma de representação do Mal.
É impossível representar seis milhões de pessoas numa só. Mas se não o fizermos também estamos a mentir. Quando nos dirigimos a uma criança, não lhe podemos contar toda a verdade, mas se lhe contarmos outra coisa, estamos a mentir. A única forma de resolvermos este problema é dar vontade de fazer perguntas. As respostas, vão encontrá-las noutro lado, não no filme. Em documentários, em livros, em aulas de História.
Mas a animação deu-lhe toda uma outra liberdade para criar essa representação.
A animação não está bloqueada pelo realismo. Atores, iram apenas fazer de conta. Fazem de conta que estão com frio, mas sabemos que não estão. No caso deste tema, poderia até ser obsceno. Mas os desenhos não mentem. Estão lá para sugerir alguma coisa. A animação é menos realista, mas não há nenhuma mentira por detrás. Para mim, com um desenho, estamos mais próximos da realidade do que com atores a fazer de conta.
Dificilmente haveria atores a dar uma ideia precisa dos corpos dos sobreviventes dos campos de concentração.
As pessoas que saíram dos campos de concentração não pesavam mais do que 25 quilos. Não há atores com corpos assim. A animação permite chegar a uma forma mais próxima de realismo. As pistas de trabalho estavam neste espaço. Tentei criar um filtro entre o que mostro e o espetador. Os campos são vistos através de pássaros que os sobrevoam. Mostro mais o pássaro, o campo está por detrás. Nada é mostrado de uma maneira frontal.
Há momentos em que a animação para por momentos…
Quando as personagens principais caem no inferno, as imagens deixam de ser animadas, deixa de haver cor, passam a ser quadros que, com o som, com a sua duração, tentam que o insuportável seja ainda suportável, porque estamos no domínio do espetáculo. Todas estas questões foram colocadas ao longo dos cinco anos de fabricação do filme.
A animação também lhe permite chegar a um público mais jovem, com um cérebro ainda livre para absorver estas imagens, ao contrário dos adultos.
Eu diria que a animação é para o cinema o que o conto é para a literatura. Uma forma aparentemente ingénua, e em todo o caso fora do realismo, de contar uma história. É esse espaço que é interessante. Mas o filme não é especialmente dirigido às crianças. Também se dirige a eles, mas não só.
Há também um lado pedagógico, embora não aprecie mundo juntar cinema e pedagogia?
Eu também não gosto. Não é a minha profissão, não sou professor. Mas por outro lado também sabia que tinha uma certa responsabilidade ao contar esta história. Até há pouco vivíamos no tempo do testemunho, eram os sobreviventes que tinham a palavra. Não havia muito espaço para a ficção. Mas como os sobreviventes estão a desaparecer, o campo abre-se para a ficção. Senão, paramos de contar esta história. Daí a nossa responsabilidade. Mas é responsabilidade, não é pedagogia.
De qualquer forma, tem tido reações por parte das escolas?
Estou muito satisfeito, porque há uma série de professores que consideram o filme como um objeto de confiança. Que coloca questões.
O autor do livro era amigo dos seus pais. Até que ponto isso o influenciou?
A grande influência foi eu ter confiança no que estava a fazer. Eu nunca me tinha interessado por histórias à volta da Shoah. Venho de uma família de judeus da Europa de Leste que atravessou esta história. É algo de íntimo, mas não é de todo a minha história. Os meus pais tiveram de se esconder, os meus avós lutaram ou fugiram, outros familiares foram mortos, mas não é a minha história pessoal. Eu sei o que devo pensar e o que devo sentir, mas tinha tudo isto dentro de uma espécie de caixa.
O que o fez então abrir essa caixa e contar-nos esta história?
O livro fez-me abrir esta caixa, de uma forma que não estava à espera. E representá-la em animação, deu-me vontade de me investir nesta história. Conhecer pessoalmente o Jean-Claude Grumberg só me deu mais confiança para avançar. Com outra pessoa não teria a mesma confiança. É alguém que trabalhou toda a vida neste tema e não pensa como as pessoas gostavam que ele pensasse. É completamente livre na sua abordagem.
Apesar do lugar ímpar na sua obra, o filme segue uma linha de experimentação, que já passou por uma homenagem ao cinema mudo.
Há vinte anos produzi um documentário sobre o genocídio no Ruanda. Há dez anos fiz um filme sobre a guerra na Chechénia. Aproximo mais esta animação desses dois filmes. Talvez haja alguns traços de “O Artista”, porque o filme tem alguns momentos sem diálogos. Mas sou um péssimo comentador dos meus próprios filmes.
Do ponto de vista técnico, quais foram os maiores desafios que encontrou?
Para fazer um filme de animação é preciso ser muito paciente. E eu sou uma pessoa paciente. Mas não é preciso saber nada de especial. O que é preciso é fazer. Manter os olhos abertos, ter confiança no nosso instinto. Aprende-se a fazer. E tenho a sorte de saber desenhar. Comunicava com os animadores através de desenhos. É verdade que foi longo e trabalhoso, mas o mais importante é estarmos rodeados das boas pessoas.
Que relação entende que o filme tem com a história da animação?
Quando li o livro pensei estar na presença de um clássico. Foi o livro que definiu as escolhas. Não quis fazer uma versão Disney. Mesmo que sinta que há alguma coisa dos primeiros Disney, do Bambi ou da Branca de Neve. Mas também procurei muito na pintura clássica, na ilustração, na gravura.
O seu filme é o último trabalho, mesmo que seja apenas a voz, de Jean-Louis Trintignant. Pode partilhar um pouco do seu trabalho com ele?
Foi uma honra encontrar esse homem e trabalhar com ele. Uma figura mítica do cinema francês. A mais bela voz do cinema francês. Como já estava cego, foi a mulher que lhe leu o guião e disse-me logo que sim. Falámos muito, fui vê-lo várias vezes a casa dele, no sul. Quando me disse que já sabia tudo de cor fomos lá e gravámos num estúdio perto de casa dele. Foi muito bonito ver este velho ator dizer as palavras de um velho autor, dirigindo-se a uma nova geração. Como um testamento moral.
Hoje é muito tocante ouvir a voz dele no filme.
Como já morreu há dois anos, quando mostramos o filme é como se fosse a voz de um fantasma, que nos fala lá de onde ele está agora.
Como é que entende o surgimento de tantos movimentos de extrema-direita na Europa e no mundo, que negam ou idealizam o que denuncia neste filme?
Eu considero-me um alegre pessimista. Claramente, os pilares em que eu e a minha geração nos construímos, deixaram de o ser. Quando olho à minha volta, tenho a impressão que o mundo que conheci se está a desmoronar, mas os jovens que vão nessa direção também têm a impressão que o mundo dele se está a desmoronar. E é a resposta que dão. Há uma espécie de pânico generalizado. Não estou nada otimista. Esses jovens vão construir o mundo deles, eu vou morrer dentro de alguns anos.