
“Entrei no inferno. E ainda estou lá”, confidencia o escritor no seu novo livro
Joel Saget/AFP
O sempre controverso Michel Houellebecq desfia as amarguras mais recentes num relato autobiográfico intenso que agora chega às livrarias portuguesas, menos de cinco meses depois da edição original.
Há sensivelmente um ano os media de todo o mundo deram eco da mais recente polémica de Michel Houellebecq, envolvendo a gravação de um filme pornográfico que, contra a sua vontade, circulou livremente. Nas vésperas da publicação de um novo romance, não faltou quem, utilizando um cinismo que o próprio autor francês decerto não desdenharia, visse nesse caso apenas mais um golpe publicitário destinado a elevar ainda mais os seus índices de notoriedade.
Sacrificado sem remissão pela opinião pública do seu país, que viu nesse caso uma oportunidade perfeita para um há muito esperado ajuste de contas, Houellebecq remeteu-se ao longo desse tumultuoso período a um silêncio só interrompido há meses (a edição francesa data de maio) com a edição de “Alguns meses da minha vida”.
É a partir das franjas da existência – “entrei no inferno. E ainda estou lá”, escreve a dada altura – que o por norma controverso romancista nos desfia os contornos de um episódio sórdido em que afirma ter sido vítima da sua própria estupidez e ingenuidade, ao assinar com o realizador neerlandês Stefan Ruitenbeek (a que se refere sempre como “Barata”) um contrato que lhe concedia direitos leoninos sobre a dita película. Há outros episódios a que o livro faz referência e que também contribuíram para o “annus horribilis” do escritor, tal como uma entrevista à revista “Front Populaire” contendo declarações islamofóbicas que garante terem sido retiradas do contexto.
A soberba e a provocação tantas vezes associadas ao autor de “Partículas elementares” dão lugar nestas páginas confessionais a um tom compungido através do qual assoma um ser frágil e indefeso que se mostra incapaz de processar os acontecimentos a que assistia, inerte. Embora o ressentimento contra aqueles que lhe negaram a hipótese de se defender das calúnias seja também um dos estados de alma dominantes, o que faz deste livro um relato de humanidade tocante são as reflexões que faz em torno da beleza, do desejo e do amor.
É nesse conjunto de impressões partilhadas com o leitor que Houellebecq diz que a pornografia, quando feita em contexto caseiro, pode ser uma expressão sincera e honesta do desejo ou que Sade e Picasso simbolizam a fealdade absoluta, beneficiando da decadência de valores para impor a sua visão artística.
“Alguns meses na minha vida: outubro de 2022-março de 2023”
Michel Houellebecq
Guerra e Paz
