Mísia narra a sua vida que se confunde com a história sociocultural da Península.
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Uma "hecatombe" empurrou Mísia para um ambicioso projeto: o lançamento de uma autobiografia e um álbum indexado, "Animal sentimental". O plano ganhou velocidade quando foi diagnosticada à artista uma doença oncológica. "São palavras enormes, pensei se sobreviver à primeira operação tenho de escrever", conta ao JN. A ideia maturava há décadas: "Sempre soube que ia escrever um livro, com tantas vidas que vivi. Mas tinha muitas dúvidas enquanto a minha mãe ainda estava viva".
O livro é um encantador retrato de vida, anterior ao seu nascimento. Desde a colisão cósmica dos seus pais, uma bailarina catalã e um engenheiro químico residente no Porto com elipses onde aparecem histórias dos seus avós.
A partir daqui, há a construção de uma personalidade, indelevelmente marcada pelas circunstâncias especiais em que cresceu.
Eixo Barcelona-Porto
Desde os relatos da sua "yaya" (avó catalã), uma personalidade âncora e os seus contos de uma Catalunha marcada pelo franquismo, ao retrato de um Porto burguês, nem sempre afável com quem sai de um registo normativo de época, aqui cabem histórias da sociedade ibérica. Conta no livro que as senhoras do Porto "quando saíam para lanchar na Ateneia, ou na Arcádia, cheiravam a naftalina e falavam sobre criadas, receitas e bolos". Esta é apenas uma das referências ao Porto e ao "modus operandi" classista.
"Tenho uma nostalgia com o Porto, ainda tenho muita família paterna. Costumo dizer que, se tivesse mais amigos, me mudava para o Porto. Eu penso na cidade e lembro-me muito da amabilidade das pessoas, são mais espontâneos, algo que não acontece em Lisboa", conta.
Apesar destes óculos amorosos, impostos pela memória, relata : " Tenho uma pequena espinha de não cantar no Porto, mas a vida é feita de surpresas.... Cantei uma vez no Rivoli, porque o Bill T. Jones [coreógrafo norte-americano] me convidou para a Porto 2001. E tive um concerto em Gaia que correu muitíssimo bem".
Uma história muito curta comparada com os êxitos internacionais que soma. "Aprendi a separar-me dos pontos de dor, já não escarafuncho mais. Todos temos nós para desatar e o Porto é um dos meus", remata.
FRUTOS DO CONTEXTO
Nem todos os relatos são românticos. Há episódios duros de violência, quer no meio familiar, quer na esfera pública, e Mísia faz por preservar as identidades, intitulando os personagens pelas profissões. "Não refiro o nome das pessoas, porque isto não é um livro de retaliação ou de ajuste de contas. São só episódios. Não são necessários os nomes, até porque teria de explicar o contexto. Nós não somos só bons ou maus."
O livro e o disco foram muito rápidos, quase em simultâneo. Cada capítulo corresponde a uma frase de uma música do disco.
"Percebi outro dia que gravei 15 discos em 30 anos. Nem sei como fiz tantas coisas, nem percebo essa urgência. Surpreenderam-me sobretudo os projetos paralelos. Cantar fado é epidérmico, mas o filme ou o trabalho que fiz sobre os sete pecados capitais no El Grec [festival artístico de Barcelona]... É como essa pirosada de ser renovadora do fado, nunca a percebi, mas a verdade é que resultou assim", constata, entre risos.
Do projeto "Animal sentimental" faz parte o álbum, guiado pela própria Mísia em parceria com Wolf-Dieter Karwatky. "Artisticamente, sou muito centrada, mas com boa voz há muita gente, o que faz um artista é a sua essencialidade", explica. Até chegar a esse estado existiram vários de transmutação, sempre com a meta na validação. "Não sou refém da validação, mas tinha uma necessidade muito grande de pertença. Queria muito ser aceite, agora já posso fechar a porta e ir embora. Estou em paz."