PJ Harvey teve o set mais sério do dia inaugural do festival. Mas a maior surpresa veio da Austrália: Royel Otis foi uma festa rija de pop.
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A noite foi de PJ Harvey, do seu teatro cénico e das mulheres, mas antes: adivinhava-se, o refrão daquilo é tão contagiante, tão enérgico e positivo que assim que entra pelas orelhas adentro nunca mais sai — alapa-se na cabeça e fica a girar em torvelinhos até estontear. É o hino do 1.º dia do Primavera Sound Porto, festival de três dias que abriu hoje à beira de esgotar. Chama-se “Sofa King”, é o super-hit de jangle pop vitaminado dos australianos Royel Otis e tem um refrão de amoroso desdém, assim: “Não te metas comigo, não sou o homem que devia ser, mas tu és tão bonita!” — e toda a encosta do Palco Vodafone, surpreendentemente cheia para as cinco e pouco da tarde (jovens adultos, maioria de mulheres, metade sentados, florais e atrás; à frente havia braços e copos no ar, quadris a rodar), gingou naquele corridinho pop que cresce, cresce, cresce até estalar no ar — “You're so fucking gorgeous!”, cantaram milhares de pessoas felizes a soterrar o refrão.
“Vocês são tão incríveis, sabem?”, disse Otis, o vocalista/teclista de boné, olhos muito abertos a lampejar. “É a nossa primeira vez no Pórtó. Wow, isto tem tão boa vibração! Obrigádô!”.
Arma sem pólvora
Passar dali diretamente para Militarie Gun — com desvio pelo meio para Blonde Redhead e o seu dream pop meio mortiço no palco Super Bock (ler ao lado) — é um choque térmico: a plateia do palco Porto, o maior, está esboroada, desconcentrada e aquele pós-hardcore ameaçador, que em disco é tão vital, não levanta relva nem pó, à exceção do hit final, “Do it faster”, um sério vespeiro rock que faz dançar.
“Eu sei, vocês estão todos aqui para a SZA”, disse num passo o vocalista Ian Shelton, um personagem saltitão que envergava um colete preto anti-bala, “nós também adoramos a SZA, mas, vá lá, cheguem-se à frente! É a nossa primeira vez aqui e viemos de LA, estamos tão longe de casa…”. Mas o povo pouco ligou, mal se mexeu, estancado numa certa irresolução. Não foi um concerto falhado, mas ficou claramente aquém, como uma arma de pólvora seca. O momento alto, para a meia dúzia que ouviu aquilo e desatou a rir, foi quando alguém do meio da plateia gritou para o Ian ouvir: “Tens um belo olho negro, ó man!” — e ele tinha, sim senhor, o direito, todo rosa-negro sopeado, mas ele não ouviu.
Eletricidade a sério, essa sim, num art rock de exaltar, foi com Water Your Eyes e depois ainda mais, chispas e tudo, com a deflagrante Amyl e os seus Sniffers, punk penetrante, ressoante, a sibilar.
A liturgia PJ
SZA, a nova grande diva da neo-soul que canta “Kill Bill”, e que arrastou a multidão do 1.º dia, já caiu fora do fecho desta edição, assim como a pequena-grande Mitski, por isso a noite foi de PJ Harvey.
PJ, que está com 54 anos e cada vez mais bonita — olhos negros, túnica branca riscada de expressionismo, sapatilhas, sorriso de águia-audaz — não dá concertos; desfila num teatro cénico de ópera pós-grunge e é pomposamente minimal. Não dialogo connosco, não macaqueia, a sua eutimia é total, mas tem o público todo, todo na mão, que estava ali, atentíssimo e eclesial como numa cerimónia de reverência doutrinal.