"Seja o que for", um livro de Miguel Araújo em que faz o elogio das insignificâncias e o elogio das causas consideradas perdidas.
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O ritual repete-se duas vezes por mês: Miguel Araújo recebe uma mensagem no telemóvel a avisá-lo da aproximação do "deadline" para o envio da crónica na revista "Visão" e só aí, quando o fim do prazo está iminente, parte para a escrita. Não o faz por laxismo mas por estratégia criativa, garante: "Só funciono sob pressão, para obrigar-me a escrever de uma assentada, sem mastigar a ideia. É como estar na ponta da prancha e sentisse o fio da navalha nas costas".
Quando a ideia para o texto surge, seja na rua ou na fila do supermercado, o músico anota-a para memória futura. Não raro, a mesma representação dá origem a uma música, num processo de partilha em que o mais importante "é a ginástica de domesticar as ideias".
Agrupadas pela segunda vez num volume autónomo, intitulado "Seja o que For", as crónicas detêm-se nas insignificâncias da vida que, em tantos casos, são mais importantes do que as questões ditas fraturantes. Da arte associada ao ato de lavar a loiça ao prazer de correr pela manhã, tragando quilómetros de alcatrão que antecedem um mergulho retemperador no mar, raros são os assuntos quotidianos que escapam ao olhar arguto. É uma apologia da lentidão que não se fica pelas crónicas e o leva também a desligar os noticiários televisivos no horário das refeições ou a deixar de seguir páginas nas redes sociais que fomentem o ódio e o conflito. "Joga a meu favor neste mundo não encaixar neste mundo. Há um lado de desaproveitar a vida que não me entra na cabeça. Como é possível, por exemplo, que quem mora na Foz nunca vá à praia à porta de casa?", questiona.
A defesa de causas consideradas perdidas é outra das constantes das crónicas de Araújo. Na tentativa de mostrar "o outro lado das coisas", procura demonstrar que a tão maltratada música pop é, afinal, mais rebelde do que géneros entretanto cristalizados. "A pop sempre foi vista como a sucata da música, mas é o único género onde se pode andar à solta. Não encontramos esse total desrespeito pelas convenções no fado, no punk ou no heavy metal, de certeza".
Escritos num ápice, os três mil carateres das crónicas começam a ser escassos para a torrente de ideias que se apodera muitas vezes de si. Por isso, o músico já decidiu que "um dia vou por ali fora para ver o que sai".
Se será um romance ou um conjunto de contos, não sabe. Do que tem a certeza é da "maior exposição" associada à escrita. Até porque "o importante na música é soar bem" "Se for preciso mudar um nome para a rima soar mais acertada, não é problema", diz, apontado "a maior fluidez e o menor número de filtros da escrita".
Há ainda outra diferença incontornável entre ambas as artes. Se na música, "nunca vou conseguir ter o mesmo som do Elvis Costello ou do Sinatra, na escrita a dignidade do suporte da minha escrita é igual à do "Tolstói", graceja.