Não é um concerto, é um espetáculo, performance, arte: FKA Twigs no Meo Kalorama

FKA Twigs cumpriu as expectativas e a honra de cabeça de cartaz de segundo dia do festival da Bela Vista
Foto: Hugo Moreira/Meo Kalorama
Segundo dia do festival fechou já com a noite avançada e a cantora e produtora britânica a surpreender com um elaborado espetáculo cénico e de dança em três atos. Os Scissor Sisters mostraram que ainda sabem dar uma festa e, no palco secundário, ela foi pegada.
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Cabeça de cartaz do segundo dia do Meo Kalorama, um regresso há muito esperado depois de uma passagem pelo Primavera Sound Porto há já dez anos – esteve para repetir a dose em 2023, mas acabaria por cancelar por razões logísticas – FKA Twigs cumpriu as expectativas e a honra de cabeça de cartaz de segundo dia do festival da Bela Vista: ainda para mais sendo-o numa hora muito avançada.
O público, não imenso mas bastante para a hora de início do concerto (2 horas) era claramente composto maioritariamente por fãs da cantora, que também é compositora, produtora e atriz. São precisamente todos estes seus lados, estas vertentes da britânica de 37 anos, que se reuniram e confluíram no novo espetáculo que concebeu para a tour Eusexua, nome do álbum lançado em janeiro deste ano, e que a trouxe a Portugal.
Para o apresentar, Twigs conceitualizou um concerto cujo impacto em quem vê, do início ao fim, é enorme – mesmo, ou ainda mais, num contexto que aqui quase parece desenquadrado, de festival, sendo porém inevitável pensar como seria ver isto num recinto fechado e num outro horário. Pouco mais de uma hora de músicas, dividida em três atos, que é acima de tudo uma performance, pensada ao milímetro, uma criação artística, uma declaração.
Ainda antes da cantora surgir em palco, já vários bailarinos lançaram o mote, surpreendendo todos com o nível da dança e da coreografia, quando depois de uma introdução se ouve “Perfect stranger” e a artista vai-se revelando numa estrutura de metal.
Logo ali, de inicio, se percebe como Twigs tem o público na palma das mãos, por vezes a reagir literalmente a cada detalhe mais forte na coreografia, se bem que toda ela é forte, desconcertante, teatral,
cenográfica, parte não só do espetáculo mas da história, misturando dança contemporânea, moderna, ballet, teatro musical.
Em “Room of fools”, a cantora mostra os dotes de canto lírico, em “Striptease” ouve-se a música enquanto ela faz uma impressionante e artística dança de varão, e de repente já estamos no segundo acto.
A música, sobretudo do já aclamado “Eusexua”, vai, é claro, existindo, ouvimos temas como “Papi bones”, “Numbers” ou o emotivo “Cellophane”, na sua mistura única, tal como a conhecemos desde que se lançou em 2014, de trip hop com eletrónica, R&B com Avant-pop.
Mas neste espetáculo é dos dançarinos que não conseguimos tirar os olhos, cada detalhe, figurino e expressão; deles e da cantora, que também se revela uma excelente dançarina, dos seus movimentos, das suas caras, todos têm algo a dizer, em cada momento.
Ainda há uma semana, nas suas plataformas, FKA partilhava o entusiasmo por esta tour, por este espetáculo que criou: “Qualquer pessoa que tenha acompanhado minha jornada desde o início sabe que o processo de criação no estúdio é o meu lugar feliz” dizia, agradecendo aos “lindos dançarinos e artistas de movimento” da Eusexua tour, “o amor e o carinho que desenvolvemos juntos”. Semanas antes, falava numa “criação na qual coloquei a minha alma e acredito que está entre os meus trabalhos mais fortes”, sendo, depois de assistir, incontestável a sua apreciação.
Poderosa Azealia e a festa dos Scissor Sisters
Horas antes de FKA, Azealia Banks foi um furacão que varreu o palco Meo: pouco menos de uma hora de concerto, cerca de 10 temas cantados em série, como se fosse fácil e mais um dia. Não é: a autora de “212”, “Atlantis” e “Luxury” deu um concerto cativante e mais enérgico do que na estreia no Super Bock, Super Rock em 2013 (depois de um cancelamento um ano antes).
Com mais algumas canções e muitos mais anos de palco, vestida de fato de bailarina com corpete, saltos enormes e em constante dança, só a cantora e um dj em palco, Banks entrou à capella, cantando brevemente em brasileiro “Chega de saudade”, como tem feito nos concertos no Brasil, e como que a chamar o público que vinha de outros palcos.
Durante a hora de espetáculo, navegou rapidamente, com segurança e muitos meneios, por canções como “New bottega – aí já público totalmente rendido e a dançar, ou o seu maior êxito “212” e novamente muitos a cantar e mais a saltar, um piscar de olhos até ao final.
Embora a comunicação fosse quase nula, a norte-americana esteve sempre sorridente, longe das polémicas que muitas vezes a rodeiam por diversas afirmações públicas ou cibernéticas. Aqui dedicada à música e oscilando facilmente entre o hip hop mais suave, o rap ou a dance/house, é nos momentos mais recatados da batida ou mesmo a capella que se percebe a verdadeira dimensão e camadas da sua voz. O som é fórmula certa para uma noite de festival, rap com batidas poderosas e toques de anos 80 e 90, as letras são por vezes controversas ou repetitivas mas o público parece tudo conhecer e adorar, a rapper terminou de altafone na mão, com o Kalorama conquistado.
Depois, palco para os Scissor Sisters, de volta mais de 12 anos depois da última passagem por Portugal ou última digressão: estiveram parados, reuniram-se sem Ana Matronic que lhes desejou sorte mas estava entretanto comprometida com vários projetos, reforçaram os vocais e o espetáculo com novas coristas, e está tudo bem quando acaba bem.
Mais de 10 anos depois, o vocalista Jake Shears – que até já tinha estado no Kalorama, a solo, no ano de estreia do festival em 2022 – e a sua alegre, divertida, colorida e talentosa companhia em palco fizeram um concerto de grandes êxitos, daqueles que já nem nos lembrávamos que tinham ou que eram tantos: “Laura”, “Comfortably numb”, “Take your mama" intercalado com “Freedom” de George Michael, “Tits on the radio”, ou “Fire with fire”.
“Foram tão queridos hoje e é tão especial voltar a Portugal depois de tanto tempo, com os Scissor Sisters”, dizia o sempre muito conversador vocalista antes “I don't feel like dancin'”, e que grande paradoxo no título já que foi um daqueles momentos de pessoas a dançar em literalmente cada canto do recinto, longe ou perto do palco, com filhos ao colo ou comida na mão, quase uma flash mob improvisada de vários milhares. 12 anos depois, o grupo norte-americano provou que ainda sabe dar uma festa, um espetáculo meio concerto, meio cabaret, meio Broadway, completo na comunicação, alinhamento, performance, com tempo para cantar os parabéns a Bridget, uma das novas vocalistas no final, levando-a às lágrimas.
Festa pegada no segundo palco
Sexta-feira foi dia de festa corrida, dança batida, momentos notáveis, no segundo palco do Kalorama, ou San Miguel. Depois Heartworms e da energia dos portugueses Maquina; de Brooklyn, EUA, os Model/Actriz vieram provar porque estão a cravar um lugar muito próprio na música, confirmado com “Pirouette”, segundo álbum editado em maio.
Se em registo discográfico, o baixo e a guitarra esmagadores e a batida pulsante, são já de si marcantes, ao vivo tudo muda: o quarteto composto por Cole Haden, Jack Wetmore, Ruben Radlauer e Aaron Shapiro – três ex-estudantes da reputada escola Berklee de Boston e um recrutado vocalista –, com a sua sonoridade afiada, e catártica, caos sonoro mas controlado, são um caso claro onde a combinação da música com a performance leva o conjunto a outro patamar, muito por “culpa” do carismático e performativo vocalista, com um pouco de punk e muito de Lady Gaga, uma sua referência assumida.
Do início ao fim foi um pouco o que se passou aqui e logo em “Mosquito” já se sentia a eletricidade do concerto de um grupo que está no auge e a vivê-lo: Cole Haden, de fato preto com capuz e luvas, camisa branca e botas de salto, é excesso, é gritos, é teatro, um pouco diva e um pouco de tudo; e de alguma maneira, a mistura resulta.
Ao terceiro tema o vocalista já estava no meio do público (“Help a lady out”, ou “ajudem a senhora”, pedia aos seguranças, tentando passar a grade) dizendo como “cheiram todos terrivelmente mal mas é isso que eu quero”, cantando precisamente “Diva”.
Ao longo de uma hora, foi agradecendo em português, reconhecendo os fás, dizendo “eu vejo-vos a fazer os corações lá atrás, vejo-vos a todos” e quanto mais Haden salta mais o público salta e as tantas há pessoas de uma certa idade a fazer mosh, num concerto um pouco de “só vendo”, fenómeno que se em disco prometia, ao vivo supera.
Um pouco como como o duo de dark wave e synth pop Boy Harsher, que levou "Pain", "Fate" ou "LA" ao Kalorama, para nova dança pegada, e ainda faltava Róisin Murphy, artista irlandesa há muito acarinhada por cá, desde que com os Moloko começou a hipnotizar públicos.
Entrando em palco com uma larga e garrida capa e uma espécie de uma coroa-cone azul, dizendo como era “maravilhoso” estar de volta, foi trocando constantemente de fato, oscilando temas próprios com dos Moloko sem esquecer “The time is now” com novo arranjo ou versão e “Sing it back”.
Divertida, arrojada, sensual, ora arrancando pétalas de uma rosa com os dentes ora puxando uma fita vermelha de dentro da saia para dar ao público, ficou certo como aos 51 anos, mais de 25 depois de começar a cantar, a artista que nas suas muitas passagens por Portugal nunca deixou créditos por mãos alheias continua num patamar diferente e muito seu, no que respeita a vocalistas e performers da eletrónica.
Este sábado, o Meo Kalorama encerra as portas da edição 2025 com Damiano David, Jorja Smith, BADBADNOTGOOD ou Royel Otis a cartaz.
