
Estibaliz Urresola Solaguren viu o seu filme ser premiado no Festival de Berlim
Clemens Bilan/EPA
Realizadora espanhola Estibaliz Urresola Solaguren fala de “20.000 Espécies de Abelhas”, a sua estreia nas longas-metragens, já nos cinemas portugueses.
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Lúcia, uma garota de oito anos, passa o verão com a mãe e outras mulheres da família, questionando-se sobre a sua identidade de género. “20.000 Espécies de Abelhas”, filme de estreia na longa-metragem da basca Estibaliz Urresola Solaguren, aborda a temática com inteligência e sensibilidade, permitindo à jovem Sofia Otero conquistar o prémio de interpretação no Festival de Berlim. O filme aí está nas salas, recordando-se a conversa que mantivemos com a realizadora, após a estreia mundial na Berlinale.
De onde veio a ideia para uma personagem tão peculiar no centro do seu filme?
Em 2018 houve um acontecimento trágico no País Basco. Um jovem, de 14 ou 16 anos, suicidou-se. Era um rapaz trans e deixou uma carta a explicar porque tomava aquela decisão. Para tornar visível aquela realidade e na esperança de que um horizoente se abrisse para pessoas como ele, que lhes permitisse viverem as suas vidas com menos dificuldades do que as que ele sentiu. Mesmo sendo uma situação trágica, a carta estava cheia de esperança, o que me tocou imenso.
Como passou então para a escrita do argumento?
Tornei-me próxima de uma associação de famílias e comecei a fazer entrevistas com jovens, em especial com menso de 10 anos. Também me mostraram o que tinham escrito sobre as suas experiências. Fiquei chocada com alguns dos episódios dos testemunhos deles. Comecei a fazer uma colagem tipo Frankenstein dos episódios mais significativos, emotivos ou mesmo divertidos, que também havia. Em especial comentários deles sobre a forma por vezes tão ridícula como a sociedade está construída.
A sua personagem é um compósito dos jovens que entrevistou?
Comecei por entrar no ritmo do filme, dos seus pontos mais importantes, em termos dramáticos e narrativos. Mas sem nunca perder de vista a vontade de fazer o retrato de uma transição. Não apenas de uma criança, mas de uma mãe, de uma família.
A Sofia compreendeu perfeitamente do que se tratava na sua história?
Sim, completamente. Para mim era fundamental preservar a naturalidade e a frescura que o trabalho com crianças pode trazer. E o guião estava escrito de forma muito precisa, não a podia deixar improvisar muito. Precisava que as coisas corressem de uma forma específica. Cada cena tinha algo a ver com ela, mas também com os outros, com os adultos. Mas não lhe dei o guião completo, para que não pudesse antecipar o que se ia passar.
Como trabalhou então com ela?
Quis que fosse abordando aos poucos cada camada da personagem. Cada dia trabalhávamos a relação com uma das outras personagens e ela ia desenhando as cenas, para ela. E ia preenchendo os espaços vazios entre as cenas. Colocou imenso do que ela é nesses desenhos. E sim, ficou perfeitamente a par do percurso que a personagem dela ia atravessar.
Quais foram os critérios de escolha da Sofia para sua personagem?
A Sofia tinha nove anos quando filmámos. As características da sua sexualidade ainda não estavam completamente desenvolvidas. Mas o rosto dela era tão ambíguo, podia ser vista como rapaz ou rapariga, dependendo das roupas, das atitudes ou dos códigos de género que aprendemos a codificar.
Qual é a principal mensagem que gostaria de transmitir com o seu filme?
Quis mostrar uma outra expressão da diversidade humana, situada num ambiente natural. Deixando-a expressar como a criança que é. E dando a oportunidade a esta família de se confrontar com algo de novo, sobre a sua criança, mas também sobre si própria.Foi sobretudo isto que quis mostrar. No fundo, é toda a família que se transforma, que constrói algo de novo.
Pode dizer algumas palavras sobre o simbolismo ou a metáfora que se encontra por detrás do belíssimo título do seu filme?
Para mim, as abelhas são a garantia da biodiversidade da natureza. Estou a falar também da diversidade humana. Mas também há a ideia de que cada abelha na colmeia tem um papel específico e todas elas são absolutamente necessárias para a colmeia sobreviver. A colmeia é mais do que a soma de todas as abelhas.
Era a ideia da família como uma colmeia?
Sim, a colmeia tem as suas próprias regras, como têm as famílias, que são um microcosmo da sociedade. As abelhas permitiram-me falar dessa tensão entre o indivíduo e o coletivo. Estamos sempre a lutar contra um grupo, mas não poderíamos sobreviver se não pertencêssemos a esse grupo. Somos todos interdependentes.
E porquê 20.000?
Fui pesquisar e descobri que havia 20.000. Mas para mim é mais do que um número. É coo se houvesse uma infinita variedade. Também estou a explorar o que tem sido a Mulher, ao juntar personagens de três gerações. Também falo das dificuldades que as mulheres têm tido ao longo dos tempos em explorar a sua sexualidade ou a manifestar os seus desejos e ambições.
Há então esse lado de observação do papel da Mulher na sociedade, no seu filme…
O meu filme tem mais perguntas que respostas, mas a única resposta que posso dar é que não existe o que se chama de Mulher. Há 20.000 espécies de mulheres no mundo. Ou milhões. Não faz sentido criar uma divisão entre Homem e Mulher. Mulher não quer dizer nada, porque significa tudo, ao mesmo tempo.
As abelhas têm esse aspeto que referiu, mas também podem ser perigosas para o ser humano, podem mesmo matar. Como a família que pode ser um local tóxico.
Completamente. Há essa contradição, o veneno das abelhas pode matar, mas também pode curar. Tudo tem o s seus dois lados O amor, quando é expresso de forma saudável, é algo que nos nutre, mas também pode ser constrangedor e opressivo. O que se passa nesta família é essa dialética de um amor expresso de formas contraditórias. Mas não é sempre assim?
Há outros filmes que tenham sido feitos sobre o tema que lhe deram coragem para avançar?
Felizmente, têm sido dados grandes passos na sociedade e no imaginário coletivo, no que diz respeito à compreensão deste tópico. O progresso está a ser muito rápido. As coisas mudaram de forma incrível desde que comecei a escrever o guião, em 2018. Há filmes que foram feitos então que já foram ultrapassados pela realidade. Foi interessante apercebê-lo. Isso obrigou-me a estar sempre atenta ao que se passava. Por isso, interessei-me mais em ver filmes sobre famílias do que sobre a questão transgénero.
Existe algo de tão específico como cinema basco?
Em termos de indústria, sim, de certeza. Está a crescer imenso, graças também ao Festival de San Sebastian. E há oito anos foi criada uma escola de cinema no País Basco, que nunca tinha existido. Também tem havido residências de escrita para desenvolver projetos. Já há uma associação de mulheres realizadoras Tudo isto funciona como um ecossistema, que permitem que os criadores evoluam. O talento só por si não pode sobreviver, são necessárias instituições, como a televisão regional, que financia o cinema.
E a questão da língua, como é que se coloca?
A televisão financia mais se os filmes forem falados em basco. Mas diria que o que nos diferencia mais do cinema catalão ou galego é que eles têm as suas línguas mais bem defendidas e mais presentes nas respetivas sociedades. O que não acontece tanto no País Basco. Há por isso uma diferença entre cinema basco e cinema falado em basco. Foi por isso muito importante para mim que o filme seja bilingue, castelhano e basco.
O que a levou a interessar-se pelo cinema?
Quando era miúda escrevia histórias e desenhava-as. O meu principal interesse era a pintura e o desenho. Não sou aquela pessoa que aos 16 anos fez o seu primeiro filme. Os meus pais achavam que as artes não eram uma boa escolha. Mas comecei a interessar-me pelo cinema, trabalhei como anotadora ou assistente de realização em outros filmes e em 2019 fundei a minha própria companhia. Uma aposta sem qualquer garantia, mas uma das minhas curtas foi premiada em Cannes e ainda não acredito o que estou a viver.
