Jornalista da SIC, Sofia Pinto Coelho já dirigira várias séries de documentários televisivos, como "Despojos de Guerra" ou "Era Uma Vez em África". Agora, aventura-se pelo documentário cinematográfico, com "Daniel e Daniela".
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Um pai de 83 anos e uma filha de 12 exploram as suas raízes africanas, numa viagem por Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, explorando temas como colonialismo, a afirmação racial ou o desenvolvimento em África. O filme chegou esta quinta-feira aos cinemas.
Como é que descobriu o Daniel?
O Daniel é amigo de um amigo meu, da Guiné. Sempre ouvi falar que havia um tipo muito engraçado, muito pantomineiro, muito espalhafatoso, que tinha uma espécie de gruta cheia de livros. Há algum tempo fiz quatro coisinhas sobre a guerra colonial, através de fotografias, cartas escritas, filmes e livros. Nessa altura, a pessoa dos livros que entrevistei foi o Daniel.
Como é que decorreu esse primeiro encontro?
Percebi que ele era uma pessoa muito à-vontade, falava de uma forma muito desassombrada. Mais tarde, comecei a trabalhar na questão dos problemas de obtenção de nacionalidade de miúdos negros filhos de pessoas dos PALOPs, porque os miúdos que já nasciam aqui não conseguiam documentação. Entrei neste mundo que a burguesia branca não conhece. Há umas divisórias invisíveis. E o Daniel podia fazer essa ponte.
Qual foi o momento em que percebeu que tinha de fazer um filme com o Daniel?
Foi ver que as pessoas de cor negra em Portugal eram tão invisíveis. Agora menos, depois do Bairro da Jamaica e dos julgamentos da Cova da Moura, houve uma evolução. Mas na altura, do que me lembrei foi que o Daniel era um rosto, uma voz e um carregar de histórias e de memórias, que eram um contra-discurso. Uma forma de ver o poder da educação e da erudição num rosto negro. O que me atraiu foi uma família burguesa, mestiça, que tem histórias iguais às nossas, e de trazer um discurso que não é ortodoxo.
O racismo e o pós-colonialismo, que estão longe de estar fechados, são temas que particularmente a fascinam...
Começaram a fascinar-me. A partir daí tenho lido muita coisa. O que vejo é que seja lá fora seja cá, é muito polarizado. As reivindicações de que temos de restituir as peças de museus às suas origens africanas, de que temos de destruir as estátuas dos esclavocratas, de ter cotas nas universidades, isso tudo interessa-me, reflito sobre isso e chego sempre à conclusão de que é difícil ter uma posição muito vincada. Eu não a tenho, de todo.
Quais foram as principais dificuldades logísticas do processo?
Não houve tremendas dificuldades logísticas, porque embarquei nisto completamente ao sabor do improviso. Simplesmente, fomos. Não planeei nada, o que era um risco tremendo. Podia ter corrido pessimamente. Tive uma tremenda aprendizagem para sair da forma de trabalhar jornalística. Agora que cheguei ao fim já me sinto confortável
A equipa era composta por quantas pessoas?
Éramos um bando de quatro mais dois. Eu, o diretor de fotografia, o diretor de som e uma produtora. E o Daniel e a Daniela, que se encaixam em tudo e se entregaram a tudo. Todos os momentos que estão ali são momentos de total surpresa e espontaneidade.
Como é que conseguiu que para o Daniel e a Daniela a câmara fosse invisível?
Eles são assim. O Daniel é um ator, está sempre em representação. É um tipo muito natural, está sempre com graças. Já na entrevista que lhe tinha feito anteriormente ele tinha aquela coisa provocatória de me dizer, lá estás tu a pensar como branca. Mas deixaram-se ir, a Daniela também. Está permanentemente em despique com ele para ver quem é o mais esperto.
Fora de campo, antes de ligar a câmara, havia uma espécie de guião sobre o que iriam falar?
Ele embarcou nisto com uma grande dose de aventureirismo e de inconsciência. Limitou-se a dizer que sim. A grande dificuldade com ele era conseguir um discurso articulado, porque ele deriva muito.
Não havia um dispositivo prévio?
Mas não discutimos muito o dispositivo, nunca houve um guião. Disse-lhe simplesmente que gostava de os acompanhar, de ver o que ele pensava. Simplesmente tinha de armar situações em que estivessem juntos. Para a miúda foi uma chatice. É um documentário, documentei o que foi acontecendo. Sendo que o pensamento dele é o de fazer pontes, de compreender o passado, de não poder julgar a História com os olhos do presente.
Há momentos em que parece que a Daniela é a mais esclarecida dos dois. Isso corresponde ao pensamento da nova geração?
Não diria. Ela veio para cá com nove anos e tornou-se uma senhorinha, uma dona de casa, muito cedo. O Daniel tem aquele lado, que alguns homens têm, quando são muito o centro das atenções, de serem um bocadinho infantis. Atrasa-se, esquece-se, perde coisas. Ela é uma miúda mais compenetrada, disciplinada, obediente. Naquela relação quase de casal, porque vivem na mesma casa, é ela a dona de casa, a pessoa mais ajuizada.
Quando chegou à mesa de montagem, quantas horas tinha de material filmado?
Esse sim, foi um processo duríssimo. Houve uma primeira montagem, várias camadas de trabalho, com um grande contributo da produtora, a Pandora. Tinha mesmo muito material, foi um documentário construído na montagem. Eram horas intermináveis, não sei calcular. Foi feito extra-SIC, tive temporadas de duas ou três semanas de montagem, mas depois não ficava bem. É como o barro. Isso foi penoso.
Onde é que acaba a jornalista e começa a realizadora?
Essa é uma bela pergunta. Eu estou a tentar matar a jornalista. Dir-me-ão se consegui ou não. É um processo muito difícil. Está-se trinta a anos a trabalhar uma linguagem e é como se de repente tivesse de aprender a falar japonês ou alemão. Uma amiga minha diz que os jornalistas são caçadores e os documentaristas são pescadores. Um jornalista tem de estar alerta, perceber o que é o alvo, disparar e trazer a peça de caça para casa. E o pescador tem de lá estar, tem de sentir. O jornalista deixa de sentir.