Elena López Riera fala-nos de "A Água", já nas salas de cinema
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Primeira longa-metragem da espanhola Elena López Riera, "A Água" situa-se numa pequena localidade da província de Alicante, onde a realizadora nasceu e cresceu, marcada pela lenda de que cada vez que o rio transborde, devido a uma tempestade, uma mulher desaparece. O filme centra-se na personagem de Ana, de 17 anos, que descobre o amor ao mesmo tempo que tem de lidar com o peso dessa tradição. O filme estreou mundialmente na Quinzena dos Realizadores de Cannes e chega agora aos nossos cinemas.
Desde quando é que ouviu falar do mito que explora no seu filme?
Na verdade, não sei. Nasci naquele lugar e cresci lá. Passo metade do meu tempo lá, com a minha família. É uma mitologia local com a qual sempre cresci. É como uma voz que esteve sempre dentro de mim. É como todas as tradições, não têm nem princípio nem fim. Está ali.
Que efeito teve em si quando era criança e adolescente?
Quando tinha cinco anos vivi a primeira grande inundação de que me lembro e esses medos e essas tradições tiveram muito força. Quando comecei a escrever o guião, em 2017 ou 2018, havia uma ameaça de tempestade que acabou por nunca ocorrer. Mas voltei a esses medos e a essas lendas populares e foi com base nessas memórias que comecei a escrever a história, com o meu co-guionista.
Um guião e um filme são algo de muito preciso e de técnico. Foi fácil ou difícil separar-se desse lado emocional e autobiográfico?
Não sei separar o cinema da vida. Eu trabalho de uma forma muito visceral, muito intuitiva. É a minha maneira de trabalhar e gosto que seja assim. Trabalho sempre com pessoas da minha aldeia, que não são profissionais, mesmo na equipa técnica. É assim que sempre sonhei fazer os meus filmes. E rodeio-me sempre de outras pessoas, em todas as etapas, para que não seja apenas eu, eu e eu. A montadora, o meu co-guionista e os produtores são quem me ajuda a que não seja apenas um diário filmado.
A Ana do filme é a personificação da Elena quando tinha aquela idade?
Oxalá fosse. É uma Elena sublimada. Em muitos aspetos gostaria de ser tão corajosa como a Ana e de ter aquela determinação. É uma projeção do que eu gostaria de ter sido e de ser agora. Tem muitas coisas de mim mas também da atriz que a interpreta. E de muitas mulheres que cresceram naquela terra, com o peso da tradição mas com a necessidade de sair dali.
Como é que descobriu a Luna Pamiés?
Fiz um casting, com uma francesa, especializada em castings de rua. Vimo-la numa festa popular e ficou logo muito claro para mim que era ela. Mas a Luna é como a personagem, muito misteriosa. Aparecia e desaparecia. Continuámos à procura, mas ao fim de ano e meio voltou a aparecer e pedi-lhe para não voltar a desaparecer.
Qual foi a reação das pessoas da sua terra, quando lhes mostrou o filme?
Nós trabalhámos de forma muito artesanal. A equipa era muito pequena, passámos muito tempo juntas antes de começar a filmar. Eu venho do documentário, para mim é muito importante conhecer as pessoas e observá-las. Depois mostrámos o filme na aldeia e foi muito emocionante para todos. Foi como ver um vídeo familiar num grande ecrã.
Quem são aquelas mulheres que por vezes interrompem a ficção, se assim o podemos dizer?
Podemos e devemos. Era mesmo isso que eu queria, que interrompessem a ficção e nos recordassem que estávamos a falar de algo real. Uma delas é a minha mãe. Outras são vizinhas ou mulheres que não conhecia e conheci durante o processo de escrita. Pessoas que tiveram a generosidade de nos contar as suas histórias. Para mim, foi muito bonito, emocionante e enriquecedor.
Pode falar um pouco da sua aldeia e da região em que se insere? O espetador não espanhol não sabe muito bem onde se encontra.
É uma região do sudoeste espanhol. Vive sobretudo da agricultura, exporta produtos para toda a Europa, em especial limões e laranjas. Está perto do mar. Mas de costas voltadas para o mar. Mas a especulação imobiliária que se produziu em Espanha a partir dos anos de 1990 para a construção de casas de férias está muito perto de nós. É uma região que foi muito pobre mas onde há agora algum dinheiro.
E do ponto de vista das mentalidades?
O peso do catolicismo, sobretudo no que diz respeito à mulher e à sexualidade está muito presente. Uma região que odiei e de onde quis sair, como a personagem de Ana, mas onde sempre volto. Há uma relação de amor e de ódio. É uma região que também foi atravessada por muitas culturas. Os árabes estiveram lá oito séculos, os fenícios também. Temos agora muita emigração do norte de África. Há uma mescla de culturas, que origina algumas fricções, mas também coisas boas.
Hoje fala-se muito, sobretudo nos estudos fílmicos académicos, de um olhar masculino no cinema. Diria que o seu filme oferece um olhar feminino?
Preferia que dissessem que tinha um olhar feminista. Não é a mesma coisa. Não estou muito de acordo com esse binarismo de que os homens fazem um cinema masculino e as mulheres um cinema feminino. É muito mais complexo. Eu pretendo que o filme tenha um olhar crítico sobre as estruturas em que se constrói a nossa sociedade. Outra questão é a posição da mulher no cinema e estamos a pouco e pouco a vencer batalhas, no cinema e na sociedade em geral.
Nunca é fácil fazer um primeiro filme. Como foi o seu processo de financiamento?
Surpreendentemente foi muito fácil. Também estive muito bem acompanhada pelos meus produtores. As observações que faziam eram sempre artísticas e nunca para tornar o filme mais comercial. Não diria que o filme é comercial, mas para surpresa minha também está a correr muito bem nos cinemas. O público gosta mais de coisas arriscadas do que imaginamos. Há pessoas de todos os níveis sociais e culturais a ir ver o filme. Sou uma otimista, vamos ver como se passa com o segundo.
Já há ideia para esse segundo filme?
Já estou a escrever o guião. Na verdade já devia ter escrito mais, mas este ano tem sido cheio de viagens, a acompanhar o filme. Tem sido muito bonito.
Primeiro filme e logo em Cannes. Como é que foi a experiência?
Foi como um sonho. Toda a gente sonha em ter o primeiro filme num festival como Cannes. E ainda por cima na Quinzena dos Realizadores, uma seção de que tenho muito carinho. Mostrei lá a minha primeira curta e eles queriam muito o filme. Para mim é muito importante mostrar um filme num festival onde me queiram mesmo. E foi muito emocionante. Veio a minha família e muita gente da aldeia. Foi muito bonito.