"O dever de deslumbrar", biografia escrita por Filipa Martins, é uma bela homenagem à poetisa e pensadora açoriana Natália Correia no centenário do seu nascimento.
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Tão excessiva como genial, Natália Correia (1923-1993) viveu exatamente como quis, por muito que tal custasse à moral vigente. Tanto política como literária, cada qual com as suas normas apertadas.
Disso - e não só - nos dá conta Filipa Martins, ao longo das quase sete centenas de páginas de uma biografia que exibe um rigor e uma factualidade assinaláveis, sem que a sua leitura deixe de ser viva e dinâmica.
A improvável trajetória de vida de Natália de Oliveira Correia inicia-se numa pequena freguesia de Ponta Delgada, Fajã de Baixo, mas rapidamente o destino a fada para outros voos, em grande parte devido ao facto de o pai ter abalado pouco depois para paragens distantes. A escassez de dados biográficos sobre a infância faz com que a biógrafa não se detenha em demasia nesse período, quanto mais não seja porque, nas décadas seguintes, a autora de "Mátria" acumulou um capital de experiências equivalente ao de várias vidas.
Muitas dessas dimensões apresentam até o seu cunho de ineditismo. Se era sabido por muitos que a escritora se iniciou aos microfones da rádio pública e tentou até uma carreira como cançonetista, já a suspeita pelas autoridades da época de que era na verdade uma espia, além de "cripto-comunista", não deixará de espantar até os seus leitores mais devotos.
O livre acesso ao imenso espólio biobibliográfico de Natália Correia e as largas dezenas de entrevistas feitas pela autora conferem ao livro uma invejável riqueza humana. Habilmente, Filipa Martins escapa a duas das principais armadilhas em que as biografias costumam cair: não diviniza nem diaboliza a poetisa. A tal ponto que, como afirmou há poucos dias na apresentação do livro no Porto, "somos capazes de amar e odiar Natália Correia na mesma página".
A mais censurada das autoras do Estado Novo, apoiante feroz de todos os candidatos que ousaram fazer frente aos títeres do regime, continuou a ser uma voz crítica depois do 25 de Abril. Em particular do antigo primeiro-ministro Vasco Gonçalves, a quem devotava uma antipatia muito particular.
Convencida de que "viver poeticamente é viver as coisas em potência", entregou-se não apenas à criação de uma obra monumental - com quase meia centena de títulos -, mas também à defesa de causas que considerava urgentes. Quase sempre contra a maioria.