Um nevão como não se via durante o festival há mais de uma década e o tradicional empenhamento político da Berlinale dominaram a cerimónia de abertura da 75ª edição de um dos maiores eventos cinematográficos do mundo, que teve lugar ao início da noite de quinta-feira na capital alemã.
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Berlim é também o que se pode chamar uma das grandes capitais mundiais do envolvimento político, das manifestações, dos momentos icónicos na história mais recente da humanidade. Pouco antes da cerimónia de abertura, a nova diretora do festival, Tricia Tuttle, fez-se acompanhar de alguns realizadores alemães numa pequena demonstração pela libertação de David Cunio, ainda refém do Hamas, e que fora ator, com o seu irmão gémeo Ariel, de um filme de Tom Shoval, “Youth”, exibido no festival há mais de uma década.
Ainda na noite de ontem, o realizador apresentou, numa sessão especial, o recente “Letter to David”, onde recorda o processo de casting dos dois irmãos e nos mostra como Ariel e o resto da sua família lidam com a incerteza de voltarem ou não a vê-lo com vida.
Mas a noite de abertura da Berlinale foi sem dúvida marcada pelo discurso de Tilda Swinton, ao receber o Urso de Ouro de carreira. Durante mais de quinze minutos, a atriz escocesa enalteceu as virtudes da Berlinane na defesa de um cinema independente, “sem morada certa ou necessidade de visto”, afirmando que o “grande estado independente do cinema é um reino sem fronteiras, sem política de exclusão, perseguição ou deportação, inatamente inclusivo e imune a esforços de ocupação, colonização, tomada de posse, propriedade ou desenvolvimento de novas rivieras”.
Não podendo ser mais clara nos seus alvos, Tilda continuou: “o desumano está a ser perpetrado à nossa vida. Estou aqui para o nomear e para prestar a minha solidariedade inabalável a todos aqueles que o reconhecem. Os assassinatos em massa perpetrados pelo Estado e permitidos internacionalmente estão atualmente a aterrorizar ativamente mais do que uma parte do nosso mundo”.
Momento de grande emoção, beleza e sensibilidade para o que se passa à nossa volta, o discurso de Tilda Swinton quase que ofuscou o filme de abertura, “The Light”, do germânico Tom Tykwer, uma alegoria em tons de realismo mágico precisamente sobre o confronto de uma família com estas realidades. O filme foi geralmente mal recebido pela imprensa internacional, mas merece uma nova visão fora deste circo de um grande festival de cinema.
Entretanto, na seção Perspectives, onde poderemos ver no próximo domingo em estreia mundial a primeira longa de Paula Tomás Marques, “Duas Vezes João Liberada”, foram exibidos os primeiros filmes, curiosamente ligados por um olhar sobre a infância. “Growing Down”, do húngaro Bálint Dániel Sós, centra-se num acidente provocado por um garoto de dez anos e na reação da família, que se vê entre a necessidade de contar a verdade ou ver um dos seus membros enfrentar a justiça. Por seu lado, o mexicano “El Diablo Fuma”, de Ernest Martinéz Bucio, passa-se durante uma visita de João Paulo II ao
país, vista pela televisão por cinco crianças cujos pais as abandonaram, vivendo numa espécie de casulo com a sua avó.
Como o nome da seção nos diz, são outras “perspetivas” sobre o cinema, como forma de olhar o mundo. Hoje será o dia do arranque formal da competição, onde se encontram 19 títulos à espera de sair de Berlim com o tão desejado Urso de Ouro.