Um camaleão muda de pele, mas não de corpo e nele, aos 78 anos, Ney Matogrosso mantém intacto o ADN. "Bloco na Rua", o seu novo espetáculo, estreado em janeiro no Brasil e apresentado para a semana em Portugal, é mais um dessa linhagem que cruza liberdade e irreverência, e que não evita uma leitura política.
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A Portugal, Ney Matogrosso trará aos coliseus do Porto (dia 3, domingo) e de Lisboa (dias 5 e 6, terça e quarta) um espetáculo para o qual promete "diversão" perante um público que o acarinha desde que por cá se estreou em 1983, porque "sempre esteve muito aberto" à sua música, à sua personalidade artística.
O novo espetáculo, frisa na conversa telefónica que manteve com o JN a partir do Brasil, "não é de reclamação". "Embora pareça que estou falando de um assunto, passo por tudo com muito humor, muita ironia", conta.
Rita, Chico, Caetano
Em "Bloco na Rua", Ney Matogrosso apresenta-se em palco vestido com uma malha dourada e de rosto inicialmente tapado: "achei interessante entrar como um personagem, sem ser eu".
No repertório, que começou a montar ainda durante a digressão anterior - a mais longa da sua carreira -, o cantor apresenta duas dezenas de músicas de vários compositores e épocas. Há um inédito, "Inominável", e músicas que interpreta pela primeira vez, exemplo de "Como dois e dois" de Caetano Veloso. Há temas de Rita Lee e Chico Buarque, a que se juntam clássicos de Ney Matogrosso, como "Postal do amor" e "Na ponta do lápis".
"Eu quero é botar meu bloco na rua", tema de Sérgio Sampaio que dá nome à digressão, é a canção eletrizada que dá o tom no arranque do espetáculo.
No fecho, "Mulher barriguda", do tempo dos Secos & Molhados, canção-dúvida sobre o que está por vir: "Haverá guerra ainda? Tomara que não".
"Não faço política"
Num país tão polarizado como o Brasil de hoje, versos como esses ganham uma aura política, se não a tinham já. E há outros exemplos em várias canções do alinhamento: da "liberdade vigiada" de que fala "O beco" (Herbert Vianna/Bi Ribeiro), ao autoexplicativo "Tem gente com fome" de Solano Trindade, passando pelo utópico "Coração civil" de Milton Nascimento e Fernando Brandt, mesmo que escrito a pensar num outro país.
Ney Matogrosso garante que a política não orientou as escolhas dos temas que interpreta no espetáculo. As mensagens estão lá, são património das canções, mas a elas escolheu-as porque as queria cantar. "Foi só esse o motivo", diz ao JN. "Porque tem muita música dos anos 70, parece que estou fazendo isso de forma política, partidária. Mas não é. Não faço política partidária", sublinha. O que não invalida que não tenha um olhar muito crítico sobre o momento atual do Brasil.
O país está "fraturado. O ódio predomina", afirma, mas porque "tudo é circunstancial", porque "tudo é passageiro", não faz concessões ao desespero: "Eu me recuso a ter medo, porque não quero ser uma âncora do medo. Não sou. Não tenho medo". Está para a política como para a vida: "Tenho a clareza de entender que a idade, em algum momento, vai-me impedir, mas não impede ainda. Tento viver com tranquilidade com essa ideia. É a mesma coisa com a morte".