Ney Matogrosso está de regresso a Portugal. Vem apresentar o novo trabalho, "Beijo bandido", no Porto (Coliseu, na próxima quinta-feira), em Lisboa (Coliseu dos Recreios, a 1 e 2 de Maio) e em Ponta Delgada (Teatro Micaelense, 5 de Maio).
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Acompanhado em palco por um quarteto, o artista brasileiro traz um espectáculo romântico e intimista, em que se destaca a sua qualidade vocal e um excelente repertório, composto pelas 14 faixas do novo disco e mais quatro temas. Em entrevista telefónica, "Camaleão" mostra o seu lado mais "recatado" e explica por que sentiu necessidade de fazer um trabalho mais "introvertido". Com 68 anos, Ney Matogrosso fala da vida, da morte e da fé e confirma que a sua vida é o palco.
Vai estar de novo em Portugal. O que o leva a vir cá tantas vezes?
Porque gosto daí. Portugal é o único lugar, fora do Brasil, onde faço questão de mostrar o meu trabalho. Aos outros países, vou esporadicamente. Quando me convidam, vou, mas não faço nenhum esforço para ir. Portugal, não. A Portugal, gosto de ir, gosto de mostrar meu trabalho aí. Desde que fui a primeira vez, acho que só não mostrei um trabalho.
Ainda se lembra da primeira vez que veio aqui?
Foi nos anos 80. Foi o Matogrosso vestido de índio, começava com adereços autênticos de indígena e, depois, o índio ia-se transformando num índio de Carnaval.
O Ney extravagante, com muitas plumas e pouca roupa, já faz parte do passado? São os 68 anos a pesar ou é uma mudança de estilo?
Não. Já com 68 anos eu ainda fazia o espectáculo "Inclassificáveis", em que trocava de roupa diante da plateia, em que por baixo daquela roupa eu tinha uma segunda pele tatuada. Mas claro que vai haver um limite para isso. Não por pudor, mas por coerência. Sou muito crítico, não vou mostrar um corpo que eu não ache que esteja à altura de ser visto... Ainda não é o caso! Mas senti uma necessidade enorme de fazer um trabalho introvertido, saindo de "Inclassificáveis", que era muito extrovertido.
É uma pessoa introvertida, na sua vida particular?
Não sou introvertido, sou recatado.
Como é que lida com o facto de ser uma figura pública, facilmente reconhecível na rua?
Lido bem, não deixo de ir à rua por isso. Saio sozinho, reconhecem-me, mas, onde moro, ando tanto na rua que ninguém liga.
Nota-se que tem as pazes feitas com a idade. Mas como é que lida com o envelhecimento?
Com naturalidade. Não vou lutar contra o inevitável, senão, vou ficar louco. Não tem como lutar contra o inevitável. E lido bem com a morte, é o desfecho da vida. Então, não tem de ser problemático. Olho para tudo com naturalidade. Um dia, tive uma experiência muito interessante. Tive um problema no rosto, era uma coisa que, a toda a hora que eu ia fazer a barba, cortava-me. Achei que era uma verruga, fui a um cirurgião plástico e disse que gostaria de tirar, imaginando que seria uma coisa pequenininha. Mas ele tirou uma coisa enorme de dentro do meu rosto. E perguntei--lhe o que poderia ser. E ele disse que podia ser um carcinoma. (silêncio) Um carcinoma é um cancro…
Não ficou assustado?
Nem pisquei, não senti nada, aceitei aquilo com a maior naturalidade. Espantei-me com a naturalidade com que recebi a notícia. Depois, foi examinado e não era. Mas, naquele momento, em que ele me disse que havia essa possibilidade, porque o aspecto era de um carcinoma, sabe como me senti? Uma pessoa evoluída. Por não ter desesperado, não ter sofrido, não ter gritado, não ter chorado. Nada. Não senti nada. Aceitei como uma coisa natural na vida, que pode acontecer.
Tem fé? Em que acredita?
Tenho fé, acredito num princípio amoroso que mantém as células coesas. Não acredito num Deus com um dedo apontado para mim, que vive dizendo que sou culpado e que devo ser castigado. Não acredito nisso, num Deus raivoso. Acredito num princípio criador, num princípio gerador de tudo, do Universo, da vida. E, aí, ele não precisa ter nome. Mas confio nele, fazendo parte dele, sei que sou parte disso. Acredito que ele não é maléfico, jamais poderá ser maléfico esse principio gerador, que é amoroso.
"Beijo bandido" é um disco romântico, bem diferente de "Inclassificáveis", o CD anterior, mais pop/rock. Como surgiu a ideia de lançar um disco assim, em que foi buscar temas antigos e lhes deu nova vida, com novas sonoridades, desde o tango ao bolero e samba-canção e um toque de jazz?
A ideia de fazer este trabalho surgiu quando a caixa ["Camaleão", com 16 discos, comemorativa dos 35 anos de carreira do artista] foi lançada e faltava muita coisa, porque tinha um disco que deveria ser só participações minhas em discos de outras pessoas. E muitas das coisas que fiz e de que gostava não entraram. Então, comecei a pensar em fazer um trabalho em que eu desse uma versão minha sobre essas músicas minhas, como é o caso de "Fascinação", "A bela e a fera". Foi isso. Comecei a procurar outro repertório e vi que este seria uma coisa romântica, mas tive muito cuidado para que não ficasse piegas. Porque o romântico e o piegas caminham muito perto.
Fez um CD intenso, sem ser piegas.
Sim, tem provocação, tem humor, tem ironia. Fui seleccionando o repertório. Claro que para os concertos não são só os temas do disco, já tem mais quatro músicas, é um formato mais abrangente. É um trabalho de que gosto muito, que está tendo muito êxito aqui [no Brasil]. Inclusive, apresentei--o, no ano passado, em São Paulo e a Associação Paulista de Críticos de Arte já lhe deu um prémio como melhor "show" de 2009. O que me deixa eufórico, porque nunca tive um trabalho assim, que mostrei durante três dias e com o qual ganhei um prémio, logo.
É cantor, actor, dançarino, faz bandas sonoras para filmes e séries, faz iluminação dos espectáculos. Sente-se melhor na pele de actor ou de cantor?
Para mim, tudo é uma coisa só, é um princípio artístico. Quando preencho ficha num hotel, na profissão, escrevo que sou artista. Para mim, isso tudo faz parte de uma coisa só, do mesmo princípio. Todas as que me for possível expressar, expressarei. O foco da minha vida é o palco.
Como lida com a crítica? Qual o melhor elogio que lhe podem fazer?
Tive um momento em que pensei que a crítica ia entender-me. No meu primeiro trabalho a solo, não fui entendido, então, pensei que não preciso deles [críticos]. Iria seguir a minha vida, não contaria com esse apoio. Obrigado pelo apoio que poderiam ter dado e não deram. Então, adeus. Vou cuidar da minha vida. Agora, o que gosto é quando ouço dizer que continuo cantando bem, que não sou só aquele ser extravagante, escandaloso e que, acima de tudo, tenho uma voz e que, apesar dos 68 anos, ainda estou cantando.
Quais são os seus músicos preferidos? O que costuma ouvir?
Não ouço muita música.
Não?
Não. Leio mais do que ouço música. Leio muito. Gosto de ler, muito. Sou até meio viciado. Quando não tenho que ler, fico meio... Leio de tudo, leio sobre Astronomia, sobre Geografia, sobre Biologia. Eu queria estudar biologia, não quero formar-me em Biologia, mas quero estudar Biologia, para saber. Pode ser que eu ainda faça isso.
Sei que está a projectar um livro...
É uma biografia. Uma colecção de pequenas biografias, nada muito importante. Além disso, fiz um filme, "Luz nas trevas", mas ainda não foi lançado…