No Festival de Gramado, jovens realizadores defendem causa negra e indígena.
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Com a campanha eleitoral a ter o seu início oficial precisamente a meio do festival e as eleições a terem lugar sensivelmente daqui a um mês, no que será um momento decisivo para a vida futura do Brasil e com repercussões imensas em países da região, como a Argentina ou o Chile, que vivem também momentos de charneira, o Gramado tem sido palco de muitas manifestações públicas onde a reconquista de uma verdadeira democracia tem sido o mote.
O Gramado é uma cidade montanhosa no estado do Rio Grande do Sul, o mais rico do Brasil e também o mais bolsonarista. Mas o festival, que há cinquenta anos faz parte da oferta cultural da cidade, já foi apelidado de uma "trincheira de resistência", com uma programação que abre as portas ao cinema de todo o país, este imenso país que é o Brasil, não esquecendo, muito pelo contrário, o cinema dos negros e dos indígenas.
Aliás, o festival, com uma passadeira vermelha situada numa rua coberta, ladeada de cafés e restaurantes, muito procurada por volta das 18h, quando começam as sessões competitivas e por onde passam sobretudo atores muito conhecidos do cinema e da televisão brasileiras, tem uma componente social muito importante.
Assim, o público em geral que deseja adquirir um bilhete para os filmes da noite não tem de pagar nada. Mas tem de trazer consigo dois quilos em alimentos, a distribuir mais tarde pelas famílias mais carenciadas da região, visto que, como em todo o Brasil, neste estado as desigualdades sociais são também enormes.
Imagem muito forte desse palco de resistência que o Gramado oferece, com muitos gritos de incentivo à reconquista de um ministério da cultura, ao ecoar pela sala do Palácio do Festival de gritos "Fora Bolsonaro", "fora esse genocida", "viva a cultura brasileira", são os jovens que têm apresentado curtas-metragens, numa das secções competitivas mais interessantes do festival. Representando, além disso, a diversidade cultural, étnica e cinematográfica do Brasil.
Do Sergipe, o estado mais pequeno do país, situado na costa atlântica do nordeste, vimos "Imã de Geladeira", dos jovens Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo. Em cerca de vinte minutos de filme conta-se a história de um casal de costureiros que, depois de uma série de apagões no bairro, perdem o seu frigorífico. Resolvem então procurar um novo eletrodoméstico numa loja de usados, mas o que levam para caso parece oferecer alguns riscos. Mas só para pessoas negras...
O filme foi produzido pela Florió de Cinema, uma jovem produtora onde os dois realizadores são sócios, tendo já produzido outros filmes curtos sobre identidade negra. Ao JN, Sidjonathas explicou melhor de onde vem este filme. "No imaginário brasileiro a região de onde vimos é considerada como atrasada, que não segue o percurso histórico do Brasil como um todo. Na região nordeste há uma tradição muito grande da herança
africana e da herança indígena. Por conta do que essas populações entendem como as suas tecnologias, o pensamento ocidental e branco considera essa região como antiquada. Considera essas populações como desprovidas ao nível intelectual e tecnológico. Tentam colocar as nossas narrativas, as nossas vivências como algo de exótico."
O jovem realizador desabafa mesmo: "Isso sente-me mesmo no Festival de Gramado. Estamos no sul do Brasil, num local com uma herança europeia muito forte, e sentimos isso o tempo todo."
Carolen aborda a importância de se fazer cinema no lugar de onde veem. "Tem a ver com o contraponto com os imaginários que estão enraizados na nossa sociedade. Nós queremos contar as nossas narrativas, a partir do nosso lugar". Uma ideia que Sidjonathas sublinha: "Queremos abalar as estéticas canonizadas no imaginário coletivo. Que fetichiza, que exotiza, que cria estereótipos. O cinema, como lugar de construção de imaginários, tem tido um lugar nesse processo. Nós vemos o mundo através das imagens que consumimos."
O realizador recorda também que, "embora estejamos num país onde a maioria da população é negra, na publicidade, na televisão, no cinema, são brancos, e quando são negros, são traficantes ou pessoas na linha da miséria. A ótica branca tem-se perpetuando e isso reflete-se na maneira como as pessoas olham para nós."
A questão racial é crucial na narrativa de "Imã da Geladeira", uma história inspirada nos primeiros anos de vida em comum dos pais de Carolen, que a tiveram com apenas 17 anos. O filme foi apoiado pela APAN, a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negros, que os realizadores sublinham como "um grande marco para articular o cinema negro brasileiro contemporâneo. Participando em ações setoriais, em todo o país. Para que se pense o cinema negro a partir também de negritudes plurais. A negritude que é sentida e vivida no sudeste e no sul do país não é a mesma do nordeste."
Carolen não hesita em dizer-nos: "Não existe democracia racial no Brasil. O que existe é uma falsa democracia, a partir da qual se constrói essa imagem de que está tudo bem. Essa imagem não vem só de fora, também existe no Brasil a ideia de que não há atritos raciais. Que é um país miscigenado, onde toda a gente se dá bem. Mas é tudo um grande carnaval, a realidade não é bem assim."